Pecado original

Pecado original

sábado, 29 de julho de 2017

A paz no centro do pensamento social cristão

A Igreja Católica está hoje, mais do que nunca, consciente da sua vocação de artífice da paz. Por toda a parte, com generosidade e humanidade, ela faz ouvir a sua voz sobre as questões da solidariedade, do desenvolvimento e da justiça social.
Como bem sabemos, esta vocação está no centro da mensagem universal de paz que percorre o Antigo e no Novo Testamento. A Igreja, inspirada sobretudo pelo discurso de reconciliação dos Evangelhos, tem refletido constantemente, ao longo da sua história, nas questões da paz e da concórdia, sem nunca deixar de reexaminar as suas próprias doutrinas, como por exemplo o conceito o de «guerra justa» que nasceu no contexto das violências da Idade Média.
Com a encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII, publicada em Abril de 1963, a Igreja Católica optou por dirigir-se «a todos os homens de boa vontade» e não apenas aos crentes, para que todos se empenhassem na construção da paz, baseando-se nos princípios da verdade, da justiça, do amor e da liberdade. Deste modo a sua mensagem tornou-se mais universal e ainda hoje inspira o empenhamento social e político de muitos leigos.
Ao anunciar Cristo, a Igreja «revela o homem a si próprio», porque, em Cristo, o mistério do homem é iluminado. Por ser, instrumento de evangelização», o Pensamento Social Cristão (PSC) gera as motivações profundas para também se ocupar dos «temas» particulares nomeadamente da família e da educação, dos deveres do Estado, da vida económica, da cultura, do respeito pela vida.
Entre eles está também o tema da guerra e da paz, o que poderá levar a pensar que se trata de um tema entre muitos e, por isso, não essencial. Creio que a dúvida poderá ser superada se distinguirmos dois níveis de significado do termo «paz». Um primeiro nível, mais elementar, de paz como ausência de guerra (e, de facto, os dois termos estão associados, como se fossem um único problema, o «da guerra e da paz»); e um segundo nível, de paz como vida plenamente humana em Cristo. O PSC só secundária ou indiretamente se ocupa da paz de acordo com o primeiro significado, mas ocupa-se primária e diretamente da paz de acordo com o segundo. Não para evitar o primeiro, mas para o enfrentar sob a luz certa e do ponto de vista específico da Igreja. Portanto, o PSC «proclama a verdade sobre Cristo, sobre si mesma e sobre o homem» (Sollicitudo rei socialis, 41). Assim, ela anuncia a paz de Cristo — ou, melhor, anuncia Cristo, que é a paz. Por isso a paz não pode ser, de todo, um tema especial. Ela coincide com o próprio Cristo, coração do anúncio da Igreja.
Ora isto tem uma consequência muito importante: o PSC anuncia a paz mesmo quando não fala de paz. Mesmo quando nem sequer usa esta palavra o PSC anuncia a paz «sempre».
À medida que o magistério foi desenvolvendo a sua reflexão sobre a paz, o quadro foi-se alargando progressivamente e a paz tornou-se cada vez mais uma exigência da comunidade mundial. Contudo, simultaneamente, o tema foi também radicalmente aprofundado, de modo que a paz se revela, definitivamente, como o próprio problema do homem, que não se resolve fora da sua relação com Deus.
É a esta luz que surge, num momento e contexto muito específico, a criação do Dia Mundial da Paz, pelo papa Paulo VI, em 1967, 18 meses depois do encerramento do Concílio Vaticano II, 9 meses depois da publicação da encíclica Populorum Progressio e 7 meses depois da sua peregrinação a Fátima.

Portela, 18 de Maio de 2017

Francisco Vaz

A paz como bem comum universal

Segundo Andrea Riccardi, foram dois os objetivos centrais que permearam a actuação tanto administrativa como espiritual de João Paulo II durante o seu pontificado: a extinção dos regimes comunistas no Leste europeu, sem descurar de críticas ao capitalismo principalmente em função do tratamento reservado aos mais desfavorecidos, e a preparação da Igreja Católica para o século XXI. «O longo pontificado João Paulo II atravessa diferentes cenários históricos: a Guerra Fria, a globalização e o tempo do único império americano, com a dissolução da União Soviética, o outro polo da Guerra Fria»[1]. Todavia, João Paulo II que teve de início de se confrontar com o problema da Guerra Fria, após esta ter chegado ao fim, tem de se confrontar com vários cenários de guerra. O Papa não deixa cair no esquecimento, nos discursos ao corpo diplomático, no Angelus e em todas as ocasiões, os conflitos em curso.
Perante os conflitos mundiais e das tensões, insiste no diálogo como a «procura daquilo que é verdadeiro, bom e justo para todos os homens»[2]:
«O diálogo é ao mesmo tempo a busca daquilo que é e permanece comum aos homens, mesmo nas tensões, nas oposições e nos conflitos. Neste sentido, o diálogo é fazer de outrem um próximo; é aceitar a sua contribuição; é partilhar com ele a responsabilidade perante a verdade e a justiça; é propor e ponderar todas as fórmulas possíveis de honesta conciliação, procurando unir à justa defesa dos interesses e da honra da parte a não menos justa compreensão e respeito das razões da outra parte, bem como as exigências do bem comum a ambas»[3].
Na verdade, o tema do diálogo, sendo um tema querido do Concílio e de Paulo VI, é também a proposta de todos os Papas do século XX, para que se prefiram conversações e mediações ao uso das armas na resolução dos conflitos.
João Paulo II enquadra as relações internacionais numa «teologia das nações»[4] segundo a qual os povos não são plenamente representados pelos Estados. Assim sendo a comunidade internacional é para João Paulo II uma família humana cujo bem comum internacional deve ser preservado. É por isso que a ONU é uma pedra chave na sua estratégia de afirmação do diálogo e do direito. Sendo para João Paulo II um lugar decisivo, como família das nações, para a construção da paz entre os povos não admira a sua preocupação em valorizar o seu papel. Recordamos as crises da guerra do Golfo e da Guerra do Iraque onde o Papa propõe uma diplomacia multipolar capaz de um governo mundial baseado no diálogo e no direito.[5]
É esta visão que expressa em 1986 quando fala em Assis aos líderes religiosos do mundo, reunidos para orar pela paz:
«A paz é um estaleiro aberto a todos e não somente aos especialistas, aos sábios e aos estrategos. A paz é numa responsabilidade universal: ela passa através de milhares de pequenos actos da vida quotidiana. De acordo com o seu modo quotidiano de viver com os outros, os homens optam pela paz ou contra a paz…
Possam os jovens contribuir para libertar a história dos falsos caminhos em que se extravia a humanidade»[6].

O evento de Assis está em linha com a insistência de João Paulo II na paz como dom de Deus, sublinhando que a oração é uma arma de paz para todos os crentes e não só para os cristãos. Por isso o Papa reza:
«Defende-nos da guerra! De qualquer guerra… Suplica-te o Papa, filho de uma nação que, durante a história, foi das mais povoadas pelo horror, pela crueldade, pelo cataclismo da guerra. Suplica-te por todos os povos do mundo»[7].

Ao reconhecer a dignidade e a inviolabilidade da vida humana, criada à imagem e semelhança de Deus, João Paulo II é a favor de acções não violentas para resolver conflitos. No entanto é necessário por vezes defender o agredido ou defender-se da agressão.[8] É o caso, por exemplo, da legítima defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o dever de não prejudicar a vida de outra pessoa são de difícil conciliação na prática. Por isso diz que «há um sentido da realidade, ao serviço da preocupação fundamental pela justiça, que impõe a manutenção do princípio de legítima defesa na mesma história humana»[9].
Em 1989 ao encontrar-se com militares italianos o Papa interroga: poderá ser-se cristão e militar? Esta pergunta encontra resposta no nr. 79 da constituição pastoral Gaudium et spes:

«Aqueles que se dedicam ao serviço da pátria no exército, considerem-se servidores da segurança e da liberdade dos povos; na medida em que se desempenham como convém desta tarefa, contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da paz»[10].

Por outro lado, na Sollicitudo rei socialis o papa diz que «cada um de nós é chamado a ocupar o próprio lugar nesta campanha pacífica, que há de ser conduzida com meios pacíficos, para alcançar o desenvolvimento na paz»[11]. Esta visão não é mais do que o desenvolvimento da intuição de João XXIII na Pacem in terris que já pensava que a Igreja podia e devia animar cristãmente o empenhamento pela paz.
Conforme refere a mesma constituição pastoral «a paz não é a mera ausência de guerra, nem se reduz ao simples equilíbrio de forças entre os adversários»[12]. Uma vez que o ato de guerra é a concretização em acto do ódio a paz não pode ser outra coisa que não a concretização do acto de amor. A ponte lógica estendida por João Paulo II para ligar paz com amor é a justiça. Nessa linha refere na mensagem do Dia Mundial da Paz de 1984:
«Se a formação de uma sociedade política tem como objetivo a instauração da justiça, a promoção do bem comum e a participação de todos, então a paz desta sociedade não será realidade senão na medida em que estes três imperativos forem respeitados. A paz não poderá desabrochar senão onde forem salvaguardadas as exigências elementares da justiça.»[13]

Desta maneira põe em evidência o núcleo da questão que não pode ser outro senão o reconhecimento dos direitos humanos. Assim, remete em primeiro lugar para a ideia de pessoa e em seguida para a ideia de lei. A partir desta perspetiva, o Papa vê a guerra como um levar ao extremo a injustiça por considerar que a base da injustiça é o desconhecimento do próprio homem, o que leva a que se ignorem os seus direitos. Se este desconhecimento chega a tornar-se aniquilador então temos a definição de guerra.
Por outro lado, num momento em que a imprensa mundial contabilizava mais de 44 conflitos raciais a nível mundial o Papa publica a encíclica Solicitudo rei Socialis, em 1987, que comemora o vigésimo aniversário da Populorum progressio de Paulo VI, cujo tema principal é a solidariedade. O interesse desta encíclica reside no facto de não sucumbir ao simplismo de considerar raciais essas múltiplas guerras, mas descobrir, numa análise aprofundada, que a verdadeira raiz das guerras é o ódio ao semelhante, pelo simples fato de não ser igual em tudo.
Outro conceito desenvolvido na encíclica é o de pobreza. Descuidar os pobres, diz o Papa, tem um preço; esse preço é a guerra.
«Frutos deste flagelo são o sofrimento e a morte de inumeráveis pessoas, o esfacelamento das relações humanas e a irreparável perda de imensos patrimónios artísticos e ambientais. A guerra agrava os sofrimentos dos pobres; mais, cria novos pobres, destruindo os meios de sobrevivência, casas, propriedades, e atingindo o próprio tecido do meio ambiente»[14].


De facto a pobreza e a guerra são dois factos omnipresentes na história da humanidade, mas não uma fatalidade. Para João Paulo II é clara a vinculação da guerra com a injustiça e a forma como esta alimenta a pobreza pelo que apela à moderação e à simplicidade que devem tornar-se os critérios da nossa vida diária. Apelo que concretiza de forma clara na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993:

«A moderação e a simplicidade devem-se tornar os critérios da nossa vida diária. A quantidade de bens, consumidos por uma parcela pequeníssima da população mundial, produz uma procura excessiva relativamente aos recursos disponíveis. A redução da procura constitui um primeiro passo para aliviar a pobreza, se a ela se somarem esforços eficazes para garantir uma justa distribuição da riqueza mundial»[15].



Em conclusão diria que para João Paulo II, promover a Paz, particular atenção deve ser dada ao bem comum e às suas vertentes sociais e políticas. Com efeito, quando se cultiva o bem comum, cultiva-se a paz, pois o bem comum está intimamente ligado a todas as formas expressivas da sociabilidade humana.
Francisco Vaz
Portela, 24 de Junho de 2017

           




[1] Riccardi, Andrea, João Paulo II: a biografia, Paulinas, Lisboa, 2011 p. 445.
[2] Cf. XVI MDMP, O diálogo para a paz, um desafio do nosso tempo, 1983, 6.
[3] Ibidem, 6.
[4] Op. Cit. p. 450.
[5] Ibidem, p. 451
[6] Assisi, Giornata mondiale di preghiera per la pace, Cidade do Vaticano, p. 96. Citado em Riccardi, Andrea, João Paulo II: a biografia, Paulinas, Lisboa, 2011, p. 452, nota 11.
[7] Cf. Op. Cit. pp. 452-453.
[8] Os apelos pela Bósnia, em que deseja a intervenção humanitária em defesa das populações civis situam-se neste quadro.
[9] XVII MDMP, De um coração novo nasce a paz, 4.
[10] GS 79.
[11] João Paulo II, Solicitudo rei socialis, 47.
[12] GS 78.
[13] XV MDMP, A paz dom de Deus confiado aos homens, 1984, 9.
[14] XXVI MDMP, Se queres a paz vai ao encontro dos pobres, 1993, 4.
[15] Ibidem, 5.

A fé como acto político

Os termos «política» e «político» têm a sua origem no termo helénico «polis» (πόλις), que significa, numa tradução demasiado rápida, «cidade». Porquê esta classificação, nossa, de «demasiado rápida»? Porque o termo «cidade», pela equivocidade que assumiu, já não significa coisa alguma, independentemente de uma concretização nocional ou conceptual.
Não perceberemos o que está de fundamental em jogo quando nos referimos a «política», que é o termo mais geral e, assim, o que aqui tem maior relevo epistemológico, se não percebermos o que o termo «polis» significava para quem o criou. Que é isso da «polis»?
Antes de mais, e ontologicamente, quer dizer, segundo o seu ser próprio e irredutível, a «polis» é uma relação. A «polis» é sempre do âmbito do relacional: sem relação, não há «polis». Isto significa que a «polis» nunca é do âmbito do irrelacionável, algo como uma substância isolada. A haver uma substância da «polis», tem de ser do âmbito da relação. Tal tem consequências, verdadeiramente «políticas», fundamentais. Note-se que grande parte do debate que hoje acontece a nível do que vulgarmente se chama «político» ocorre ao nível da questão das relações.
Mas a «polis» é uma relação entre quê? É uma relação entre seres humanos. Apenas entre seres humanos: na nossa experiência – e não possuímos ou temos acesso a qualquer outra experiência que não esta, pessoal e intransmissível –, não há algo como «poleis», por exemplo, de anjos ou de abelhas, pese embora a constante torrente de asneiras que a respeito de tais designações vai acontecendo, criando uma equivocidade teórica com efeitos desastrosos a nível epistemológico, que se repercutem nos níveis antropológico, ético e político.
A «polis» e, consequentemente, tudo o que a ela diga respeito é sempre e só um assunto humano. Mas é o assunto humano por excelência. Porquê?
Porque a «polis» como relação é logicamente anterior ao ser humano como coisa individual. Nenhum indivíduo humano é ou pode ser logicamente anterior à «polis» porque nenhum ser humano teve a sua origem num qualquer acto espontâneo auto-produtor, isto é, precisou sempre de ser produzido por meio de uma relação entre outros seres humanos, os seus, no mínimo, progenitores biológicos; no máximo, pais, no verdadeiro sentido antropológico, ético e político do termo.
Situamo-nos perante uma questão lógica sem resolução: por um lado, a «polis» é a relação entre pelo menos dois seres humanos, pelo que, necessariamente, tem de haver pelo menos dois indivíduos humanos, previamente não relacionados, que, ao relacionarem-se, criam, literalmente criam, isso que é a «polis». Indiscutível. Só que estes dois seres humanos, para poderem ser os dois primeiros criadores de uma cidade, tiveram de surgir de um nada humano, pois, caso contrário, teriam surgido de uma relação, o que originaria uma remissão ao infinito. Percebemos, agora, a profundidade ontológica e antropológica da «política», como suporte lógico da possibilidade da humanidade e de humanidade. É sobre esta base lógica, onto-lógica, que o que isso que é a humanidade enquanto histórica assenta.
Do ponto de vista lógico, o surgimento da «polis» nunca terá explicação possível. Não admira, assim, que os velhos mitos que procuraram explicar a existência da realidade política sejam mitos metamórficos[1] ou mitos criacionistas, em que a realidade política é dada precisamente como um dado. É o caso do mito adâmico judaico-cristão, em que a «polis» é dada por criação: quando de si próprios se apercebem, já Adão e Eva estão em relação, em acto político. Não criam a «polis»; pelo contrário, no caso vertente, destroem-na.
Originalmente, então, a criação da «polis» implica a relação entre dois seres humanos não politicamente produzidos, não em termos estritamente humanos. Esta evidência aplica-se mesmo ao necessário substrato lógico das pesquisas antropogónicas e politogónicas levadas a cabo pelas escolas de tipo páleo-arqueo-antropológico: quando descobrem algo de incontrovertivelmente humano – e não, não é uma Lucy qualquer –, descobrem sempre já a humanidade pronta: é o que se nos depara em Altamira, em Lascaux, no Vale do Coa e em tantos outros lugares já inquestionavelmente humanizados.
Catar pulgas a entes formalmente semelhantes não constitui «polis», pois não é um acto de um ser humano, isto é, a menos que seja um ser humano a fazê-lo. Não há «cidades de abelhas» senão na mente de cientistas intelectualmente preguiçosos, que resolvem mal, com más metáforas projectivas, assuntos que deveriam ser bem resolvidos atribuindo o sentido próprio a cada acto. Ora, os seres humanos só podem perceber os actos de seres humanos e, ainda assim, com toda a dificuldade que a distância necessária para que haja relação política implica.
Que distância é esta? Não é evidentemente uma distância física; psicológica, apenas; afectiva, apenas; imagética, apenas; volitiva, apenas. Trata-se de uma distância segundo o ser: para que não nos confundamos em termos dos nossos seres, somos ontologicamente separados; ontologicamente «incomunicáveis» é a designação correcta.
A nossa comunicação, toda ela, é do âmbito do político, pois dá-se, e dá-se apenas, ao nível da relação entre seres humanos, como seres separados ontologicamente que somos.
Então, o que é que se comunica? «Protocolos», o que se comunica são protocolos. Linguagem, se se quiser; mas linguagem que tem de obedecer a protocolos partilháveis pelos vários seres humanos em relação. É esta a razão pela qual não podemos comunicar senão ilusoriamente, na forma do sentido, com outros seres, a menos que estes seres sejam capazes de usar os mesmos protocolos que nós: teremos de humanizar o equivalente, na abelha, ao sentido, antes de realmente comunicarmos com ela; ou, então, «abelhizar» o nosso sentido.
Percebe-se, assim, a razão profunda por que, por exemplo, é miticamente possível comunicar com anjos: é que estes são autênticos protocolos de comunicação humana, mas sem carne, isto é, são relações de sentido que transcendem a condição histórica dos seres humanos: não têm, por exemplo, de aprender línguas; comunicam ou comunicam-se directamente como sentido. Tal é impossível no nosso âmbito.
Os seres humanos são seres históricos, com tudo o que tal implica em termos de mediações, isto é, de impossibilidade de acção, qualquer seja, sem o uso de meios. Não há magia no mundo – não confundir com maravilha, que é comum (o mundo é comummente maravilhoso como mediação).
Sermos entes de mediações significa que somos entes necessariamente éticos, isto é, que têm de se movimentar autonomamente para que possam, em absoluto, ser.
É neste âmbito mediacional que se enraíza a possibilidade da «polis»: para que a relação, há pouco explorada, entre pelo menos dois seres humanos aconteça é necessário que pelo menos um deles decida – isto é, empreenda, aja, no sentido de comunicar com o outro. Este é o cerne da ética como lugar motor próprio de cada ser humano e, assim também, da «polis», na forma do acto político – de todos os actos políticos – acto irredutivelmente próprio de se aproximar do outro para com ele comunicar.
Nem sequer estamos a qualificar o acto. Pode ser um acto qualquer de aproximação, com uma finalidade qualquer. Como é evidente, o futuro desta relação incoativa depende da finalidade, mas não é isso que é o fundamental, antes, o primeiríssimo passo de aproximação. Não é sequer preciso realçar a importância que este tema tem na situação política actual do mundo, como, aliás, sempre teve.
A «polis» nasce, assim, do acto em que a interioridade ética de um qualquer sujeito humano é transcendida no sentido do estabelecimento de relação de comunicação com um outro. Mesmo que o outro recuse prosseguir a relação, já não pode escapar a ter estado em relação. A «polis» teve a extrema brevidade de dois actos, o da aproximação e o da recusa, mas, em absoluto, aconteceu.
Este exemplo teórico extremo permite perceber a força antropológica da relação que cria a «polis», logo, a força antropológica da própria «polis», da «coisa política» em acto. Compreende-se, agora, muito melhor, por que razão não pode haver humanidade sem «polis», sem «política». Também se começa a compreender muito melhor a razão pela qual a política pode ser a actividade mais nobre da humanidade, embora esta última habitualmente teime em que não o seja.
Todo o acto político tem como seu criador antropológico um acto ético, como tal, irredutível. Percebe-se, também, que uma sociedade – não é bem uma «polis» – de escravos, para que possa ser criada, depende da redução ética de esses a quem se quer escravizar, receita vetusta de todos os candidatos a tiranos.
Para que não seja o triste exemplo da recusa de relação esse que define a cidade – já está na altura de lhe chamarmos assim, porque, nesta fase da nossa reflexão, já quer dizer algo de muito diferente da má tradição invocada inicialmente –, tem de haver relação como acto de comunicação possivelmente perene entre dois sujeitos éticos, duas pessoas. Duas entidades com capacidade permanente de escolha no sentido da manutenção da relação.
Ora, é aqui, neste lugar lógico da relação entre duas entidades propriamente éticas, que surge o elemento «acto de fé»: não é possível haver comunicação entre duas entidades éticas, quaisquer, sem que haja reciprocidade de actos de fé. É evidente que esta fé não é a da ordem do teologal, mas é, no entanto, a mais básica, sem a qual não pode haver a teologal, de que a outra é a matriz antropológica.
Trata-se da fundamental confiança. Nenhum acto é humanamente possível sem que seja literalmente in-formado e logicamente precedido por um acto de confiança: ninguém age de modo algum, se não tiver confiança de que esse acto em si mesmo – o que implica as suas consequências humanamente pensáveis – é confiável: como dar o possível próximo passo, se tal passo me pode precipitar, em última análise, no nada?
Esta é a matriz lógica de toda a possibilidade de acção propriamente humana: sem tal, não há um acto humano, mas algo de mecânico ou meramente biológico, isto é, do ponto de vista antropológico, ético e político, um não-acto.
Então, na raiz mais profunda da possibilidade e da realidade da «polis» está um acto de fé.
A fé – mesmo a teologal, que diz respeito à possibilidade de estabelecimento de «polis» com Deus – assume uma dupla dimensão política: primeiro, está na base de todo o acto ético em sua transcensão criadora da política, através da efectivação da relação; segundo, como acto de relação, é, por essência, um acto político.
O que temos de nos perguntar, neste nosso momento político global que vamos vivendo, é em que estado está o acto de fé de cada instante de cada pessoa que cria isto que é a «polis» como relação entre seres humanos, em forma global, mesmo já universal.
De facto, quando se diz que as pessoas perderam «a confiança nos políticos», afirma-se algo muito mais profundo do que apenas uma perda de confiança psicológica ou política, em sentido comum: vivemos tempos em que sistematicamente o acto de fé fundamental em que assenta a coisa política se vai enfraquecendo. É mesmo a chamada “sociedade” que se está a desintegrar por falta de fé.
E é realmente «falta de fé nos “políticos”», só que os “políticos” não são um «eles», mais ou menos anónimo, somos todos nós, estes que deixámos de acreditar na possibilidade de comunicar humanamente com o outro, isto é, que deixámos de acreditar na possibilidade da cidade como acto de fé dos seres humanos nos seres humanos, de que tudo o mais não é, senão, apenas, mais ou menos superficial ancilaridade.
Perdemos a fé uns nos outros. E tal sucedeu porque a fé não é a condição lógica última para a «polis», mas é precedida por uma outra condição, mais funda, que é o necessário acto de amor como suporte para o acto ético de aproximação ao outro. E é este sentido do bem do outro como motor da minha relação para com ele que, estando moribundo, está a matar a possibilidade da fé: se não amo o outro, como acreditar na possibilidade da relação com ele?
Terminamos com uma simples e claríssima citação do Papa Francisco, do § 58 da sua Laudato Si’: «Estas acções não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo.».[2]

Américo Pereira
Maio de 2017



[1] Em que, por exemplo, um ser não-humano se metamorfoseia num ser humano, assim escapando à questão lógica paradoxal da sua origem já humanamente política.
[2] PAPA FRANCISCO, Louvado sejas. Carta encíclica Laudato si’ sobre o cuidado com a casa comum, Prior Velho, Paulinas, 2015, § 8, p. 42.

Trabalho, técnica, bem e direito à riqueza

Se atentarmos ao que é o próprio da riqueza humana, podemos imediatamente perceber que a única verdadeira riqueza humana coincide em absoluto com o que cada ser humano é como realidade ontológica: o meu ser próprio é a minha grande e única riqueza. Tal riqueza ontológica matricial é a fonte possível de qualquer outra riqueza possível. Toda a riqueza possível que, assim, transcende a pura riqueza ontológica de cada pessoa, é do domínio ético, pois tem a sua única origem, absoluta origem, na mesma pessoa como riqueza ontológica, mas, agora, em acto de realização de algo que imediatamente passa para lá de tal mesma riqueza ontológica inicial. Esta transcensão cria o que é o domínio político, domínio da relação entre os actos das pessoas, actos que são a possibilidade de construção de uma riqueza não apenas individual, mas comum, que recebe o nome de bem comum. A comum riqueza é o bem comum.
Mas a possibilidade de produção de riqueza é, em sua mesma possibilidade de acto, possibilidade de não produção de riqueza ou mesmo possibilidade de destruição de riqueza já anteriormente produzida e posta como bem comum. Tradicionalmente a cada um destes actos de negatividade ontológica segundo a riqueza possível de um bem comum chama-se mal: o mal é, assim, o produto negativo da possibilidade de produção de riqueza não apenas em termos individuais, mas também comunitários.
Para que a riqueza possa ser produzida ou criada, são necessários meios: tais meios são os objectos de que o ser humano dispõe para construir a sua existência encarnada, na forma da economia, que depende sempre do trabalho e da técnica.
Antes de pensarmos a relação de trabalho e de técnica com a riqueza propriamente humana, vamos reflectir acerca do absoluto presente em tal riqueza, a fim de sabermos se estamos a falar de uma simples produção ou de algo de muito mais fundamental, de «criação».
«Produzir» significa rearranjar a ordenação de algo já existente, de modo a pôr em realidade algo de diferente. Tradicionalmente, afirma-se que nisto não há coisa alguma de novo em sentido absoluto, pelo que tal acto produtivo não pode ser encarado como um acto criador, que implica sempre um absoluto de novidade, novidade que não pode ser reduzida a algo de anterior e que, deste modo, é como se fosse “retirada” do nada.
Ora, toda a novidade, no que tem de absolutamente diferente do que já existe, é algo de absoluto, a nada redutível, pois, se o fosse, seria algo que já existiria. Assim, toda a novidade é a introdução de um absoluto na realidade já existente, modificando-a absolutamente, ainda que de forma infinitesimalmente significativa, mas, ainda assim, significativamente notável. Tal é inegável do ponto de vista teórico.
Deste modo, toda a novidade, enquanto tal, só pode ser contrastada ontologicamente com o nada de si própria que havia antes de ser posta. Quer isto dizer que toda a novidade é, só por ser novidade e por tal novidade introduzir um absoluto ontológico no real, criação.
Toda a acção humana é, portanto, criadora, quando introduz novidade ontológica no real: mas é-o apenas quando tal novidade é positiva, isto é, quando aumenta a riqueza ontológica presente no real. Quando a acção elimina positividade ontológica presente no real, tal acção é destruidora e a destruição é a antítese da criação.
Ontologicamente, quer a criação quer a destruição exigem trabalho no sentido não apenas físico de implicarem um uso qualquer de uma força qualquer numa qualquer duração – que implica sempre espaço numa realidade nunca isenta de movimento –, mas também no sentido antropológico de um exercício da capacidade de movimento humano modificador da realidade própria ou transcendente.
Podemos, pois, perceber que a riqueza propriamente humana é sempre fruto quer do trabalho humano quer de toda a técnica que tal trabalho implica e envolve.
Estamos também habituados a chamar riqueza a algo que não é propriamente humano, como, por exemplo, minerais ou forças presentes na chamada natureza, termo com que erradamente designamos a parte material do universo, especialmente a sua parte mais próxima de nós, o Planeta Terra. Mas não é difícil perceber que, sem o trabalho humano e a técnica que implica, nada de tais realidades constitui riqueza alguma real, apenas potencial: todo o ferro do Planeta, sem o trabalho de que tal mineral necessita para que se transforme em tudo o que estamos habituados a dele usufruir, não seria riqueza real alguma, mas apenas um mineral, que é o que é na independência do ser humano e da sua, aqui necessária, capacidade e realidade de trabalho.
Compreende-se mais facilmente assim a posição de Santo Agostinho, e de uma forma que nem tem sequer de apelar para uma formulação religiosa, quanto ao direito à posse de riquezas: não só estas são fruto do trabalho do ser humano e, portanto, indissoluvelmente ligadas a esse trabalho e a quem o produz, como, depois de produzidas, as riquezas, porque são património exclusivo de quem as produz, se se quer que haja cidade, têm de ser postas ao serviço do bem comum. Quem assim não fizer não merece as riquezas que tem, pois, ainda que sejam criação sua, a sua recusa de fazer cidade com elas, exclui tal pessoa do bem comum, por recusa de partilha do bem que possui com outros, tornando-a humanamente indigna de possuir um bem que em si se esgotará, isto é, que não participará para a construção, criação, de um bem para todos.
É claro que, para Santo Agostinho,[1] todos os bens, em última análise, são devedores do acto de criação divina, o que agrava ainda mais a recusa de partilha, pois recusa-se partilhar um bem que em última análise é fruto de um dom inicial prenhe de possibilidades criadoras: o doado recusa-se ao dom, o que é blasfemo em termos religiosos. A questão que se põe é se não o será sempre, isto é, mesmo fora de âmbito religioso, no campo puramente antropológico?
A construção da cidade, isto é, da possível comunidade política humana é uma questão de comunhão dos frutos criados pelo trabalho e do trabalho como capacidade e operação criadora: ao partilhar o meu trabalho, eu partilho-me como os demais seres humanos no que tenho de mais profundo em mim e que é a minha capacidade criadora. A recusa de tal partilha, se universalizável, eliminaria imediatamente a possibilidade da cidade e, com ela, da própria humanidade. Tal é a importância do trabalho como criador de riqueza, em sentido ontológico.
Julho de 2017
Américo Pereira



[1] Ver nosso estudo em: PEREIRA, Américo, «Da legitimidade da posse das riquezas à luz de dois Sermões agostinianos (15/A e 50)», in Didaskalia, vol. XLIV, fasc. 2, 2014, pp. 65-86.

Entendimento global e compromisso com as periferias Um livro-memória

O livro sobre que este artigo se debruça consta de um «Prefácio», de uma «Introdução» e de nove Capítulos, constituindo memória da Summer School / Escola de Verão que as Faculdades de Teologia e de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa realizaram no verão de 2016, em Lisboa.
O tema que orienta as várias reflexões exaradas nesta obra é o do «entendimento global e compromisso com as periferias», que põe num mesmo tabuleiro político – entendida a política em sentido nobre de busca de um possível bem-comum – quer o sentido de uma universalidade quer a sua superlativação como globalidade que se assume como tal e que, por isso, não esquece que é constituída também pelas periferias.
O mundo é mesmo um só e a não assunção do periférico como próprio seu originará uma irrecuperável fractura que porá em termos agónicos grande parte da humanidade contra a restante. De notar que provavelmente isso que se considera ser o periférico será numericamente o mais significativo. Infelizmente, ainda este modo de pensar é, se bem que de forma involuntária, etnocêntrico.
As preocupações de Francisco, o Papa, que são o pano de fundo teórico que dá horizonte cénico a este esforço de reflexão, são objectivas, logo, pertinentes, mas também são urgentes em sua pertinência.
«O mundo em que se vive contemporaneamente é o mundo em que se globalizou não a instrumentação veicular do bem anti-periférico, mas a sua activa negação, vivendo nós, aqui e agora, um movimento radicalmente agressivo – isto é, realizado por pessoas agressivas – de retorno a formas de relação ética e política entre seres humanos que não se pode não considerar senão como um processo de re-escravização, por mais esforços que os seus mentores façam por convencer os seus objectos – a grande maioria dos seres humanos actualmente existentes – do contrário.».[1]
«Neste sentido, o movimento do mundo desde o fim da Segunda Grande Guerra tem consistido fundamentalmente numa progressiva eliminação de tudo o que tinha sido obtido em termos de humanização ética e política das relações entre os seres humanos, que culminara na Declaração Universal dos Direitos Humanos, carta de princípios, não carta de valores, isto é, que estabelece algo sem o qual a humanidade não tem futuro, não meras opiniões ou meros ecos de tradições que não respeitem princípios.»[2]
Boa parte da modernidade dedicou-se a matar «Deus» e o «Homem». Tal implica consequências. Há que encontrar substitutos e tais substitutos não deixam de ser também produtos culturais. Isso que um qualquer factício conceito de «Homem» não pode substituir – o real ser humano, a real pessoa, os reais homem e mulher – existiram e operaram, agiram enquanto acontecia o que acontecia em Auschwitz, na ausência do deus morto e do Homem nunca nascido.
Algumas dessas pessoas anteciparam-se mesmo a Auschwitz, eliminando, para muitos, a negativa possibilidade do seu «pessoalíssimo Auschwitz». Referimo-nos à acção de pessoas como o nunca suficientemente mencionado Aristides de Sousa Mendes; pessoas que não invocaram em vão o nome de Deus, do vivo ou do morto, antes, negando o absolutamente vão, a vanidade da impotência dos discursos auto-apologéticos dos cobardes e a vileza dos oportunistas, salvaram, activa e penosamente salvaram, outras pessoas, assim matando o mal pela raiz, fazendo o bem. Aliás, é este o único modo real, eficaz.
Em tais tempos, os «homens» reais estavam também lutando contra todas as formas de fascismo nas diferentes frentes de batalha e morreram aos milhões, sem esperar pela ressurreição filosófica do deus morto que os impotentes querem que faça, por eles, mais uma vez e sempre, o seu trabalho em qualquer Auschwitz. Ontem como hoje.
Ontem como hoje, são estas pessoas reais as que criam, laboriosamente, sempre, penosamente, muitas vezes, isso que é o real entendimento, entendimento no e pelo bem.
Ora, apenas o entendimento, o mais global e efectivo permite isso que deve ser o outro nome da humanidade: o bem-comum.
De forma exacta, deveria dizer-se «entendimento universal», pois não há verdadeiro entendimento passível de perenidade não antecipadamente limitada sem que seja necessariamente universal.
Trata-se de realizar o bem-comum para todas as pessoas, sem excepção, em cada momento, sempre.
Não é isto uma utopia, mas a intuição da possibilidade de uma existência política, de base ética, em que todos os seres humanos possam, e, de facto, sejam o melhor que podem ontologicamente ser, em universal e total harmonia. É este o entendimento como padrão de possibilidade.
Ora, este livro, sem manias de grandeza quaisquer, é um singelo contributo para o trabalho em prol do entendimento universal.
Aqui, podemos encontrar capítulos escritos por especialistas de vários âmbitos do saber, da Engenharia Nuclear, à Filosofia, da Antropologia, à Comunicação Social e à Teologia. Trabalha-se o tema do «entendimento global» de forma transdisciplinar, aportando reflexões pessoais cientificamente fundamentadas sobre relações a montante e a jusante da «realidade entendimento».
O sentido da «globalidade» impõe-se, como se depreende da própria leitura integrada dos vários capítulos, porque a humanidade evoluiu, quer de tal haja suficiente consciência ou não, para um modo de existência em que já constitui, sobretudo fisicamente, devido à facilidade das deslocações de pessoas, de bens e até de meios de destruição, um inegável todo. A globalização já não é apenas um processo, é, mesmo, já um facto. Pense-se no que seria, pela negativa, um surto de varíola que surgisse, por exemplo, num grande evento internacional qualquer e como se «globalizaria» de forma fulminante. Não perceber este novo estado – que tem dimensão verdadeiramente ontológica, onto-ecológica, se se preferir – é estar alienado da realidade.
No primeiro capítulo, «Erradicação da pobreza: diagnóstico e soluções», Eugénio Fonseca, traça um lúcido e substantivo perfil das pobrezas, pois são várias, baseado em dados fidedignos e que deveriam tornar evidente a dimensão do problema, mormente em Portugal, estudado com detalhe, que revela quer a sua enorme dimensão quer a sua profundidade: pobres, muitos e muito pobres, grande parte deles. Realidade tendencialmente ignorada, num mundo de marketing político que visa a auto-promoção da oligarquia junto da oligarquia: estas últimas palavras são da nossa responsabilidade estrita. Sendo a pobreza algo de «económico», no sentido mais vasto desta noção – que é política –, algo como uma crise económica necessariamente agrava a situação dos pobres, a grande periferia económica de sempre. No entanto, a magna questão relativa à pobreza não é a da sua contemplação teórica, mas a da acção que tenha como fim eliminá-la. Eugénio Fonseca dedica a parte final da sua reflexão à proposta de soluções pragmaticamente viáveis, a nível global: alteração do sistema económico, política redistributiva mais justa, política de erradicação que incida nos “mais pobres”, combate ao desperdício, dar voz aos pobres, assunção da pobreza como problema de todos; ao nível de Portugal: maior envolvimento dos chamados “políticos”, adopção de uma estratégia integrada, avaliação dos impactos das políticas sociais, reavaliação e adaptação das políticas susceptíveis de aumentar a pobreza, debate anual na Assembleia da República sobre o problema.

No segundo capítulo, Micael Pereira reflecte sobre «Cultura e desenvolvimento sustentável numa perspectiva antropológica», mostrando inequivocamente que apenas a integração sem qualquer desvalorização ontológica de humanidade e meio ambiente pode permitir a continuidade sustentável das gerações de seres humanos em são convívio com isso que constitui a transcendência física mundana, aliás, possível abertura para um outro sentido de transcendência, já metafísica.

Em «A necessidade da diversidade cultural», Américo Pereira mostra como a humanidade só é possível como diversa, correspondendo a anulação da diversidade à aniquilação do futuro da humanidade.

Manuel Cândido Pimentel, no capítulo dedicado ao «Diálogo intercultural e conhecimento. O paradigma da ecorracionalidade», fundamenta o que designa por uma «nova consciência que presida à economia»,[3] erguida sobre uma nova forma de racionalidade, a «ecorracionalidade», que consiste numa «disposição do conhecimento, uma tendência à instauração de uma consciência racionalmente aberta ao mistério da natureza na sua alteridade.».[4] O Autor termina apresentando um conjunto de princípios de «interculturalidade dialógica», ancilares do novo modo de racionalidade aqui proposto.

No capítulo da responsabilidade de Nelson Ribeiro, «Os Meios de Comunicação ao Serviço do (Des)Entendimento Global», é pensado o multímodo papel dos media num mundo efectivamente globalizado, pondo em destaque o que são as suas contribuições quer para o entendimento quer para o não-entendimento, mas fazendo ressaltar a incomparável capacidade de colaboração de tais meios para uma real melhoria da existência humana, se usados em tal sentido: «[…] os media podem contribuir para um melhor entendimento entre a humanidade, tal depende dos objectivos que norteiam o uso que deles é feito.».[5]

Margarida Amaral, no capítulo dedicado a «Um olhar cultural sobre a natureza», trabalha reflexivamente a relação entre natureza e cultura, chamando a atenção para que «a compreensão de que existe um elemento comum ao homem e à natureza nos leva a ultrapassar a dicotomia, entendida como separação absoluta entre o natural e o humano, […] a natureza e a cultura».[6] Para tal, a educação assume especial relevo: «Ser um homem culto é, afinal, assumir preocupações ambientais e é compreender que os problemas ambientais, sendo um reflexo do seu comportamento cultural, só podem ser atenuados recorrendo a uma educação que fomente a própria cultura […]»,[7] cultura que é «saber, aprofundamento, procura»,[8] não de satisfações efémeras, mas de um sentido propriamente humano em que a natureza é complementar do humano, não sua antítese.

No capítulo «O contributo das ciências naturais para a paz», António Marques de Carvalho começa por mostrar como a humanidade chegou ao estado de desenvolvimento e ecológico em que se encontra, definindo as ameaças com que nos confrontamos, sem esquecer que o horizonte que permanece válido é o de «uma ecologia integral»,[9] como salienta o Papa Francisco. Se, por um lado, «sem uma ampla divulgação dos conhecimentos e da solidez do método científico, não será possível assegurar os consensos que, nas democracias, permitirão aos políticos ter a coragem de tomar medidas para cuidar do planeta a longo prazo»,[10] por outro, «o conhecimento científico da história da Terra e dos recursos minerais, o conhecimento dos ecossistemas e da biodiversidade e da interacção com as práticas económicas e sociais permitem uma melhor gestão dos recursos para um futuro pacífico e sustentável.».[11]

José Manuel Pereira de Almeida, no capítulo dedicado a «Paz e entendimento, categorias Teológicas», partindo da constatação antropológica e ética de que «todos podemos trazer uma bomba dentro de nós»,[12] interroga: «que ‘bombas’ trago dentro de mim?».[13] Percebendo a radicação da violência praticada no seio do «coração violento»,[14] assinala a «cultura de violência»[15] em que vivemos, produto humano que não necessita de seres humanos especialmente perversos, mas se contenta com «a mediocridade habitualmente aceite»:[16] «a eficácia histórica do mal passa através do consenso à volta de um deixar andar as coisas como elas vão».[17] Reflectindo sobre a «violência legitimada»,[18] a «não-violência como fraternidade»[19] e «a vida como dom»,[20] bem como o papel dos cristãos, aponta o caminho – simples e difícil – para a construção da paz: «trata-se, normalmente, de dever fazer o pequeno bem aqui e agora concretamente possível para mim.».[21] Uma leitura atenta revela que este bem, ainda que manifestamente ético e político, é, como condição de entendimento e de paz, da ordem do ontológico: é o que é o possível nosso de cada dia.

No capítulo dedicado a «A inculturação ou a questão da “evangelização e diálogo cultural”», José Nunes começa por distinguir «inculturação» de outros termos, que reflectem realidades muito diferentes, como «enculturação» ou «aculturação». Assumindo o termo «cultura» como usado em ciências sociais, mantém a relação com a noção de «factor de auto-transcendência e humanização de todo o homem e de todos os grupos humanos».[22] O paradigma de inculturação é o próprio Jesus, que assimilou a sua cultura, transformando-a, tendo, por vezes, de combater o que tinha de ser combatido porque era factor de desumanização. Expondo os fundamentos antropológicos e teológicos do conceito, bem como o processo de inculturação, percebe-se que esta se cumpre quando, fiel ao paradigma: «[…] a sua atitude é a de quem assume recriando a tradição cultural herdada. O assumir da cultura judaica era, para Jesus, uma questão de levar às últimas consequências a realidade da Incarnação […]».[23]

Os vários capítulos, na sua diversidade de abordagens, entre muitas outras contribuições para a compreensão do tema do entendimento global e compromisso com as periferias, mostram que a acção humana, num regime de entendimento, mais do que global, universal, tendencialmente elimina as periferias, não através da fácil violência da aniquilação do diferente ou do incómodo, mas através da, por vezes muito difícil, acção ética e política – cultural no seu melhor sentido – de cada ser humano como deposição do bem de que é capaz no tesouro comum (bem-comum) de uma humanidade que chegou a uma fase da sua evolução em que ou vive como um todo tendencialmente em entendimento ou, simplesmente, não tem condições de sobrevivência.
O concreto da realidade hodierna parece com forte evidência dar razão a esta tese. A via do entendimento universal humano é, assim, a via única da vida humana, a sua ecologia de possibilidade de futuro.
Cumpre, com grande alegria, ao coordenador desta obra e director da Escola de Verão / Summer School que lhe deu origem, expressar o mais profundo reconhecimento a todos os que contribuíram para o sucesso de ambas as iniciativas.
Assim, saudamos os Autores da obra: Eugénio Fonseca, Fernando Micael Pereira, Manuel Cândido Pimentel, Nelson Ribeiro, Margarida Amaral, António Marques de Carvalho, José Manuel Pereira de Almeida, José Nunes: é o seu trabalho que permite esta apresentação;
Saudamos o Senhor Presidente da Cáritas Portuguesa, Prof. Eugénio Fonseca; saudamos todos os que contribuíram para a construção e publicação da obra em apresentação, especialmente o Senhor Engenheiro António Lages Raposo e a Senhora Drª. Luísa Correia e restante equipa;
Seria da maior ingratidão não saudar todos os que trabalharam para que o acto de pensamento que esteve na origem científica desta obra, a Escola de Verão dedicada ao tema homónimo do livro, pelo que nos achamos na obrigação de o fazer:
Deste modo, agradecemos à Exma. Senhora Profª. Doutora Maria da Glória Garcia, Magnífica Reitora da Universidade Portuguesa; ao Exmo. Senhor Dr. Jorge Lobo de Mesquita, Presidente Substituto da Comissão Nacional da UNESCO, em substituição da Senhora Presidente; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor João Duarte Lourenço, Director da Faculdade de Teologia; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor Nelson Ribeiro, Director da Faculdade de Ciências Humanas; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor Manuel Cândido Pimentel, Coordenador da Área Científica de Filosofia; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor Carlos Morujão, Director do Centro de Filosofia da UCP; ao Exmo. Senhor Doutor Joaquim Melro, Director do Centro de Escolas António Sérgio; à Exma. Senhora Drª. Elizabeth Silva (UNESCO);
Uma palavra de bem-haja é devida aos Moderadores das sessões da Escola: Profª. Doutora Inês Bolinhas, Mestre Juan Ambrosio, Dr. Paulo Rocha.
Ao Director Pedagógico da Escola de Verão, Mestre Juan Ambrosio, agradecemos os sábios conselhos, também os relativos à elaboração do livro.
Inclino-me perante o trabalho de mediação dos Membros das Comissões Científica e Organizadora/Executiva: apenas os que ainda não foram mencionados: Prof. Doutor Samuel Dimas, Mestre Cecília Tomás, Mestre Francisco Vaz, Drª. Ana Paula Graça, Exma. Senhora D. Elisabete Carvalho, Exmo. Senhor Nuno Lopes.
Especial destaque merece a acção irrepreensível e de uma impecável dedicação da Mestre Marta Salvador, a quem devemos a composição do tema gráfico da capa do livro e a quem dedicamos um carinhoso bem-haja.

Lisboa, de Junho de 2017
Américo Pereira




[1] PEREIRA Américo (coord.), Entendimento global e compromisso com as periferias, Lisboa, Editorial Cáritas, 2017, p. 14.
[2] Ibidem.
[3] Op. cit., p. 83.
[4] Op. cit., p. 84.
[5] Op. cit., p. 101.
[6] Op. cit., p. 105.
[7] Op. cit., p. 114.
[8] Op. cit., p. 106.
[9] Op. cit., p. 120.
[10] Op. cit., p. 121.
[11] Op. cit., p. 122.
[12] Op. cit., p. 125.
[13] Op. cit., p. 125.
[14] Op. cit., p. 125.
[15] Op. cit., p. 126.
[16] Op. cit., p. 126.
[17] Op. cit., pp. 126-127.
[18] Op. cit., p. 129.
[19] Op. cit., p. 129.
[20] Op. cit., p. 131.
[21] Op. cit., p. 127.
[22] Op. cit., p. 138.
[23] Op. cit., p. 144.