Pecado original

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segunda-feira, 1 de junho de 2020

BIOÉTICA - Estatuto epistemológico e questões principais


Neste texto, que é de índole introdutória, iremos procurar entender a necessidade antropológica a que uma «bioética» procura responder, de modo a ser possível entender o que possa ser, precisamente, uma «bioética». Não vamos, assim, partir do que é já a bioética constituída, mas da realidade que parece implicar a existência de uma bioética. Deste modo, a perspectiva será crítica, como é fundamental que seja em toda a reflexão epistemológica séria.
A reflexão acerca da bioética é uma reflexão epistemológica, não é uma reflexão moral. O que está em causa fundamentalmente é o estatuto próprio da bioética como esforço científico de conhecimento, o que implica a sua aplicabilidade concreta em âmbito antropológico. Esta só releva depois de se saber se isso que opera é epistemologicamente pertinente. As disciplinas teóricas ou teórico-práticas – como a bioética – só fazem sentido se relevarem de uma necessidade qualquer real que lhes sirva de fundamento existencial. São sempre ancilares, sempre função de um serviço ao bem-comum. De outro modo, não passam de caprichos infundados, danosos para o mesmo bem-comum. Assim sendo, estudaremos a fundamentação real do surgimento da bioética.
O serviço ao bem-comum por parte destas disciplinas, único fundamento para a sua existência, implica que não devam ser senão um trabalho objectivo de procura de soluções teóricas ou teórico-práticas para problemas reais que implicam negativamente com a realidade humana. Assim, justificam-se apenas como meios de buscar modos praticáveis de auxílio ao melhor possível da vida de todos os seres humanos, sem
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excepção. De outro modo, não são apenas inúteis como são realmente nocivas e não devem existir, pois delapidam recursos que são sempre, por causa da finitude dos meios à nossa disposição, escassos.
Tendo isto em consideração, em tais disciplinas e mormente numa humanamente tão sensível como a bioética, a procura da objectividade deve ser total e incessante, devendo ser afastado delas todas as formas de subjectivismo, todas as formas de redução da realidade a mera forma de interesse pessoal ou sectário: o que está em causa, repetimos, é o bem- comum da humanidade, não o meu bem ou o bem exclusivo de qualquer parte reduzida dessa mesma humanidade, no que configura sempre uma qualquer forma fascizante e tiranizante.
Logo, tudo quanto seja ideológico deve ser liminarmente afastado de tais disciplinas, isto é, de toda a ciência, pois é do que se trata. O cultor desta actividade deve procurar ser o mais inocente humanamente possível, do ponto de vista de todo o preconceito ou prejuízo. Será a realidade, na sua omnidimensionalidade, que será o únido guia possível para tal labor. Ora, o que acabou de se enunciar nada mais é do que o grande princípio epistemológico da independência do investigador relativamente a tudo o que não seja a mesma fidelidade ao conhecimento do objecto de estudo em causa. É esta a razão pela qual não há mesmo, por mais que se diga ou esforços que se façam, uma «ciência nazi» ou uma «ciência estalinista»,1 por exemplo, mas apenas ciência ou não-ciência.
Compreende-se, assim, por maioria de razão, que uma «bioética» que queira ser ciência e ciência aplicável e ciência aplicada (sem o que não tem qualquer interesse, não passando de mais uma forma de ludíbrio pseudo- intelectual), tem de ser epistemologicamente válida, isto é, tem de possuir
1 O mesmo não é dizer que não tenha havido seres humanos nazis ou estalinistas que tenham procurado fazer ciência, mas onde deixaram que a ideologia os condicionasse, aí, deixaram de ser cientistas e passaram a ser meros agentes políticos dos senhores ou das causas a que serviam e de que eventualmente se serviam. A ciência, quando existe propriamente como ciência, não como actividade prostituída aos senhores do momento, é independente da bestialidade ambiente em que possa ocorrer.
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não apenas uma estrutura metodológica formalmente lógica, mas também um objecto que a justifique e procedimentos que respeitem metodologicamente tal objecto. A bioética, a ser epistemologicamente válida, não pode ser um instrumento político de intervenção tirânica, antes uma forma lógica de auxiliar a resolver prática e pragmaticamente os problemas reais que teoricamente apreendeu. Este «dever» não é moral, mas formal, objectivo, ditado pela sua própria pretensão epistemológica.
O nome escolhido para a disciplina não pode deixar de ser perspectivado criticamente, sem o que se fica com a incómoda impressão de que os cultores da disciplina não sabem muito bem o que querem e do que tratam. Assim, o termo «bioética» compõem-se dos evidentes sub- termos «bio» e «ética», ambos de origem helénica. «Bio» traduz para algumas linguagens modernas o étimo grego homologamente transliterado «bio», que se refere ao termo grego, masculino do singular, «bios», «vida». «Ética» refere-se a dois étimos substantivos helénicos, que grafamos em português de modo idêntico, «ethos», mas que se distinguiam graficamente por um possuir um «epsilon», «e» breve e aberto, e o outro um «eta», «e» longo e fechado. O primeiro termo diz respeito a «costume», «uso», mas também a «hábito»; o segundo diz respeito a «morada», «lugar habitual de permanência», mas também a «hábito». Ambos os termos referem-se, portanto, genericamente, a «modo de ser».
A ética, como disciplina, tem procurado equilibrar-se entre os extremos exclusivistas de uma mera ciência descritiva do que é a agência humana e uma normatividade dessa e para essa mesma agência. Ora, o que a ética é verdadeiramente é a mesma agência humana, enquanto tal e enquanto própria de um sujeito, nisso insubstituível como única fonte possível principial para a sua mesma agência, sempre pessoal e irredutível (ver nosso estudo «Ética e política: essência e relação», Itinerarium, Ano LIV, no 191, Maio-Agosto de 2008, pp. 209-231).
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Assim, a ética sofrerá sempre desta ambiguidade, sendo sempre quer a própria agência humana, enquanto principialidade da mesma, e o seu estudo. Há também quem queira que a ética seja algo de normativo, confundindo ética com direito, confusão que em nada beneficia a disciplina e quem com ela trabalha. Deste modo, a bioética acaba por sofrer com toda esta falta de clareza, não se percebendo, muitas vezes, se isso de que se trata se refere ao que objectivamente se passa em termos da fontalidade da agência humana, ao seu estudo científico, a uma tentativa jurídica de normalização do mesmo âmbito real daquela agência.
No detalhe das questões do universo da bioética, para além desta reflexão epistemológica inicial, que permite validar ou invalidar criticamente a disciplina, salientamos, entre outras mais relevantes, as seguintes:
Que se entende por vida? O que é a vida, ontologicamente? Qual a especificidade da vida humana? Que é propriamente «ser-se humano» e não um mero outro ser biológico qualquer? Quais são as consequências deste entendimento para a bioética? Que relacionamento há entre as ciências da vida e a bioética? Qual a realidade própria sobre a qual a bioética se debruça?
Qual é a relação especial da bioética com uma ecologia que saiba situar o lugar do ser humano no conjunto holodinâmico da realidade biológica geral conhecida? Qual a relação especial da bioética com a ética geral e com a política. Qual é a dimensão política essencial e substancial da bioética?
Outras questões fundamentais são: Fundamentação filosófica da bioética.
Identidade, pessoalidade, relação da materialidade física do ser humano com a sua realidade total. A genética, a cultura e a irredutível pessoalidade.
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Corporeidade, sexualidade, irrepetibilidade, clonagem e diferença espiritual.
Formas artificialistas de relação com o humano: manipulação genética, reprodutiva e curativa.
Direito à vida, direito à sobrevivência.
Direitos especiais dos menos fortes. Escolhas civilizacionais definidoras do estatuto que a humanidade quer para si própria: uma civilização da vida ou da morte?
A saúde e a doença. Os cuidados de saúde. Ênfase curativo ou preventivo? A relação da prestação de cuidados de saúde com a política estatal e a economia. A saúde e a sobrevivência dos povos e da própria humanidade. As ameaças naturais e culturais à saúde e sobrevivência da humanidade.
A questão da guerra e os seus efeitos sobre a vida e a saúde das pessoas. Uma bioética especial para tempos de guerra?
A questão da morte como questão vital. O direito a morrer; o direito a morrer com dignidade; o direito a matar; o direito a matar-se; o direito a matar o outro. A questão da chamada «eutanásia».
Bioética e virtudes. Bioética e as virtudes cardeais.
Necessidade de uma nova «Magna carta» para uma conduta humana que tenha como única finalidade o bem-comum.
Américo Pereira
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31/12/2017