Pecado original

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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Ecologia e falsidade


A primeira falsidade acerca da ecologia é tratar-se esta de uma «questão natural». Ora, na natureza, não há quaisquer questões, pois apenas em seio de cultura podem estas surgir. A questão ecológica é cultural, humana, portanto.
Não havia mais do que estrita obediência física aos princípios naturais de movimento, incluindo as várias formas de potencialidade e de cinese, quando, antes de haver seres humanos, por exemplo, um vulcão emitia alguns milhares ou milhões de toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera. Aliás, a atmosfera nasceu precisamente da emissão de gases por parte de vulcões e outros entes naturais naturalmente emissores de gases, sem que tal constituísse questão alguma.
Em tais emissores se incluem as naturalíssimas estrumeiras animais, turfeiras e outras demais fontes por estas tipificadas. Antes de haver humanidade, com tudo isto e muito mais presente em termos ecossistémicos, não havia questão ecológica alguma. Havia o movimento natural de tudo, com as consequências necessárias. Nada se preocupava, pois nada se podia preocupar, dado que nenhum ser havia que se pudesse preocupar. A natureza é laica, não tem deuses.
É com o surgimento da humanidade – que é operativamente indistinguível da ação humana que propriamente a constitui – que surge uma modificação radical no ecossistema: a possibilidade de haver entidades que podem não obedecer deliberadamente aos comuns anteriores princípios físicos omnipresentes e omnireinantes.
É também com este surgimento que ocorre a presença de entidades com capacidade para se questionarem, entre outras coisas, sobre a sua ação sobre o ambiente.
É também falso que a consciência ambiental seja algo de recente, especialmente remontando apenas à década de sessenta do século passado. É antiquíssimo o sentido – não se lhe pode chamar «consciência» porque o termo não existia, o que não impede que isso a que se refere como sentido existisse, sem ilusão retrospetiva – da gravidade, do peso próprio irredutível da relação entre o ser humano em sua ação e isso que fisicamente o transcende, chame-se-lhe ecossistema, ambiente, mundo.
Como não ver já no mito da expulsão do casal genesíaco um primeiro momento em que a ação humana sobre o mundo é trazida em sua grave consequência à cultural colação? Como não ver nos mitos de degradação antropológica e ecossistémica a
 partir de «idades de ouro» a tradução variegada de uma mesma preocupação? Como não ver nos vários tipos – alguns propostos já em âmbito filosófico – de recosmicização de mundos caotizados pela ação humana, mundos tornados imundos pela poluição operada pelas várias culturas destrutivas, formas também elas de preocupação fortíssima com o sentido e finalidade possível de uma realidade de relação entre humanidade e meio-ambiente em que a primeira ameaçava o segundo?
Como não ver em teorias éticas e políticas várias dedicadas à promoção do bem- comum uma busca de respostas teóricas universalizáveis em termos práticos e pragmáticos como modos de combater as várias formas de imundície cultural antinatural?
Velha mentira é também a que proclama que há seres humanos em demasia – sempre os outros, nunca nós e os nossos. Mesmo com a quantidade de seres humanos que se pensa haver hodiernamente, perto de oito mil milhões (8.000.000.000), há que perceber que fisicamente, em posição de pé e com uma densidade típica de carruagem de metropolitano em hora de ponta, a oito por metro quadrado, todos cabem na superfície dos Açores. São, assim tantos?
Quanto à escassez de recursos, antes de a decretar, há que pensar se na América do Norte e na Europa, entre outras regiões ditas desenvolvidas, não consome em recursos totais cada ser humano o equivalente a várias vezes aquilo de que realmente necessita, por exemplo, em termos de comida. Quem come um bife de mil gramas está a comer proteína por dez pessoas, o que faz, imediatamente que, para ele e seu egoísmo, o mundo tem apenas oitocentos milhões de seres humanos tão gulosos quanto ele. Todavia, de facto, não tem oitocentos milhões de apenas gulosos, mas oito mil milhões, entre gulosos, equilibrados e muitos com fome, fome de comida que, afinal, sempre existe.
Falsidade final: que se esteja efetivamente a fazer – a agir – muito no sentido de atenuar e inverter impactos negativos em termos de poluição, por exemplo, a de excesso de carbono em várias formas moleculares na atmosfera. Um passo objetivamente muito mais eficaz do que fabricar através de forte poluição industrial automóveis elétricos é obrigar e ajudar a mudança de máquinas que gastam na ordem dos dez litros por cada cem quilómetros para máquinas que gastem metade. A quebra de emissões é evidente e a tecnologia e técnica estão prontas e disponíveis. O resultado é muito mais rápido e eficaz.
Por outro lado, é grande a mentira – falsidade que é propositada – quando se procura convencer as pessoas de que se está a investir grandemente no plantio de

árvores. Quantas árvores estão a ser plantadas no mundo não apenas em substituição de outras em searas de árvores – uma floresta é outra coisa – mas em novas searas de árvores, estas dedicadas à fixação do carbono?
Faz-se sequer ideia da quantidade que é possível plantar, com mais ou menos custos, mas, sem dúvida, gastando muito menos do que se gasta em material militar inútil?
O recurso a uma aritmética muito simples pode ajudar a compreender o que está em causa em termos da grandeza do possível e da grandeza do realizado. Se se plantar – nalguns casos, pode mesmo semear-se – uma árvore de dois em dois metros, em grelha, obtém-se por cada quilómetro quadrado um número impressionante de árvores: 500 x 500 árvores = 250 000 árvores. Ora, uma superfície um pouco maior do que a de Portugal, com cem mil quilómetros quadrados, permite plantar o seguinte número de árvores: 250.000 x 100.000 = 25.000.000.000. Vinte e cinco mil milhões. Três árvores por cada habitante da Terra.
Pense-se no que significa toda a área dos vários desertos quentes transformados em searas de árvores deste tipo. Dirão os sábios que se trata de uma ignara utopia. Todavia, ignaro é pensar-se que não é possível criar laranjas no quente deserto. É difícil e trabalhoso, mas é possível. É labor de paz. Sem mentir.
Américo
Universidade
Imagem:
Publicado em 06.12.2019
Portuguesa,
Faculdade
de
Pereira Ciências Humanas MicroOne/Bigstock.com

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Da ética como autopoética do humano

Embora o termo «ética» faça parte do título desta breve reflexão e muitas vezes por «ética» se entenda apenas ou prioritariamente a disciplina académica – quiçá, ciência – dedicada à normatividade não-jurídica da ação humana, não é este o sentido que será aqui usado, assumindo «ética» como, fundamentalmente, a própria ação humana na sua transcendentalidade máxima: a ética é o todo da ação humana, de que fazem parte quer as ações ditas «boas» quer as ações ditas «más».
Não se distingue, assim, entre «ato de homem» e «ato humano», pois, sem qualquer destes dois tipos analíticos da ação humana, não há propriamente «ação humana». Não há, também, qualquer ação de um ser humano que não tenha um qualquer sentido humano, dado que é através da ação que o ser humano se constrói como sentido.
Não desconhecemos a confusão moderna entre «ética» e ação de algum modo «boa», que relega o que seja a ação «não-boa» para o campo do não ético. Desta não-bondade da ação faz parte, eventualmente, a ausência de um sentido transcendental de autonomia regida por princípios a priori. Estas restrições do âmbito da ética implicam que se possa cair no absurdo de considerar como totalmente não-ética toda a existência ativa de um qualquer ser humano, levando a questionar o que seja, então, isso a que tal ser humano ético-transcendentalmente foi reduzido. O que é, na sua realidade onto-antropológica, um ser humano não-ético?
Tal ente mais não é do que uma abstração ou, então, pior, é mesmo um ser humano que foi reduzido ontologicamente a algo que poderá ser tudo menos uma entidade ética, de que temos exemplos aproximativos nas narrações feitas por pessoas submetidas a máquinas políticas de redução ética humana como foram os campos de concentração e de morte nazis, de que podemos salientar, pela exemplaridade, os textos de Primo Levi. Todavia, volta a questionar-se, que é isso de um ser humano que não é uma realidade, uma entidade atualmente ética?
Se se retira a realidade ética – que, fora de um regime abstracionista, é sempre algo da ordem do facto, do concreto que cria a história, ato a ato – a um ser humano, sobra exatamente o quê?
Não é esta redução transcendental factícia uma forma de redução ontológica, mais do que ética?; quer dizer, não é esta redução ética do ser humano uma redução realmente ontológica em que se retira a dimensão factual propriamente ativa a um ser humano, assim reduzindo a sua dimensão onto-antropológica fundamental, que é a sua capacidade – possibilidade ontológica radical – de se construir ato a ato, ato seu a ato seu? Ato com que coincide o seu ser próprio, precisamente de forma «ativa».
Apenas esta atualidade, que é mais do que própria ou apropriada, mas é coincidente com o ato-ser próprio de cada pessoa humana, permite que se possa falar de liberdade; esta não depende de qualquer forma normativa, imanente ou transcendente, mas da assunção como próprios dos atos que constituem cada ser humano. Tal diz-se de todos os atos assim autocriados, sem exceção, abarcando todo o possível e real bem e todo o possível e real mal.
Ato seu irredutível, a ato seu irredutível, não é precisamente assim que o ente humano se cria? Ato que é irredutível, no sentido em que, de facto – facto que é um ato –, cada seu movimento diferenciador relativamente ao que era, ao que já foi no absoluto da atualidade já havida e que cria isso a que se chama «passado», e que institui uma nova realidade ontológica diferenciada sua, ato que é, independente de qualquer outra consideração, mesmo seu, melhor, mesmo isso que é, em seu ato próprio, então, assim irredutível: tal movimento – em sentido ontológico, isto é, cada sua diferenciação de que foi motor próprio – é absolutamente seu, é absolutamente o que é como autoconstituição própria, independentemente de qualquer forma de circunstancialidade, sendo que, se tal circunstancialidade anular tal autonomia de motricidade de movimento ontológico de diferenciação, tal significa que, na verdade, já não há propriamente um ser humano, mas ou um cadáver movimentado por forças físicas totalmente a si transcendentes ou um ser apenas com figura humana ou com figura de vida humana, mas algo de já não verdadeiramente humano, estando nele morta a humanidade.
Esta imagem, terrível, surge muitas vezes, por exemplo, nos já mencionados escritos de Primo Levi e em muitos outros: a imagem de uma humanidade aniquilada, de facto, em corpos já quase apenas físicos ou zoo-biológicos, que se arrastam penosamente num vão afã de humana sobrevivência, mas que, na maior parte das vezes, não passa de uma desesperada subvivência animalizada. Esta animalização é fruto da ação, isto é, é fruto ético e político de uns seres humanos sobre outros, dos tiranos sobre os tiranizados.
É este estado reduzido que se encontra em tantos relatos, por exemplo, nos campos de extermínio nazi, ou em outros a que estes servem de conhecido paradigma? A resposta, que se encontra em muitos relatos fidedignos, é simples e é sim (a este propósito é claríssima a narrativa que Primo Levi faz nas suas obras, por exemplo, em Se isto é um homem?).
Ora, eliminada a totalidade da dimensão ética no ser humano, elimina-se o ser humano como tal, dele nada ficando de propriamente humano, porque dele nada fica que se lhe possa atribuir como ato seu. No limite, poder-se-ia pensar num ente, diferente do que é o ser humano, que fosse apenas um ser de paixão, sem ação. Nenhum ser humano pode, por absoluta falta de experiência do que tal seja, sequer imaginar a que possa corresponder tal ser alternativo.
Se bem que imprescindível para que o próprio humano se possa constituir, a passionalidade só é humana se se encontrar indissoluvelmente ligada a uma qualquer atividade, que tem de ser propriamente humana, não apenas mecânica, ao modo pavloviano ou watsoniano.
É esta atividade coincidente com o ato autónomo de cada ser humano que corresponde à autopoiese humana.
Esta autopoiese é sempre da ordem do ético. Esta autopoiese funda a liberdade humana e coincide com esta mesma liberdade, eliminado toda a argumentação que procura condicionar toda a atividade possível e concreta humana a ser nada mais do que uma decorrência mecânica de cânones heteronómicos porque antropo-transcendentes, ou, também, ao perigo de eventuais formas várias de ilusão, não percebendo que todo o ato – necessariamente imanente como Descartes bem percebeu – em que o ser humano qualquer se põe em e como ser é sempre absolutamente autónomo, porque é, como tal, independente de tudo, sendo que a grande ilusão consiste em pensar que a maior ilusão não é, ainda, um ato, logo, algo que absolutamente se opõe ao nada, único correlativo ontológico que pode ameaçar o absoluto do ato autónomo do ser humano, como também Descartes bem percebeu.
O melhor exemplo deste absoluto de autonomia ética e política, logo, de liberdade, encontramo-lo no início da narrativa genésica judaico-cristã, quando, independentemente de todo o contexto, hiperbolicamente ignorando a própria palavra de isso que constitui o absoluto da diferença ontológica entre o ser mundano e o nada – que surge com a designação de «Deus» – os seres humanos prototípicos agem como, precisamente, querem, mesmo sob a ameaça da aniquilação, única verdadeira condicionante séria em termos éticos, porque põe, em absoluto, em causa o ser do possível agente. É esta e não outra qualquer a densidade ontológica de cada ato e, assim, de toda a possível e real ética e sua decorrente política.
Não é pensável a ética como auto-ontopoiese humana sem que se suponha algo que faça movimentar o ser humano em sentido diferencial relativamente a qualquer possível situação ontológica em que se encontre.
Por que razão age o ser humano? Por que não haver um contentamento final em qualquer fase da sua ação, assim a terminando definitivamente? Não se está a pôr aqui a questão da chamada «felicidade», mas a indagar qual seja o motor imanente do movimento humano. Sem este motor imanente, o ser humano cessa.
Como eventual exemplo, as contemporâneas e positivistas biologias genéticas poderão afirmar – passe a prosopopeia – que o que move o ser humano é, em última análise, o ADN, como fim programático e mapa de roteiro para a concretização de si próprio, assim, como que endeusando as moléculas do ácido desoxirribonucleico. É mais uma religião, entre outras.
A questão não se situa a este nível, ainda e apenas material, mas ao nível do sentido: do ponto de vista do sentido, do ato lógico com que cada ser humano sempre coincide, o que é que o move para que continue agindo, isto é, sendo?
Aqui, encontramos uma questão que merece reflexão aprofundada e que deixamos como mote para reflexão.


Américo Pereira

Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 17.04.2019