Pecado original

Pecado original

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Bioética XIII - A questão do aborto


Isso que é comummente designado como «aborto voluntário» e que ostenta a designação técnica de «interrupção voluntária da gravidez», também conhecida como IVG, recebe toda a sua importância e premência por nele estar ou poder estar em causa uma realidade propriamente humana. Se tal não acontecesse, a sua relevância seria nula. Assim, se se tratasse da simples remoção de um mero corpo estranho, isto é, de uma coisa estranha ao corpo portador, tal constituiria apenas uma intervenção sanitária comum, tão comum como fazer a ablação de um pedaço de estilhaço ou de um tumor, por exemplo.
Quaisquer intervenções prototipificadas nestes exemplos não constituem qualquer problema ético ou bioético quer relativamente a isso que se remove quer para o sujeito intervencionado, salvo se tal intervenção puder fazer perigar um qualquer bem maior. Esta é a única ressalva lógica e racionalmente aceitável.
É apenas através da lógica e da razão que estes temas éticos e bioéticos devem ser abordados, respeitando integralmente a capacidade que a lógica e a razão possuem na mediação que permite o acesso à realidade das coisas.
Assim, todos os supostos ou pressupostos que não respeitam a lógica ou a razão, sejam quais forem as suas origens, devem ser liminarmente recusados. Deste modo, apenas a evidência lógica e racional é aceitável, não sendo aceites quaisquer contribuições que pretendam violentar, no curso da reflexão lógica e racional, num sentido ou noutro, a realidade da evidência, tanto quanto ela é humanamente possível, em cada dado momento da marcha do pensamento humano, sabendo que ninguém possui humanamente qualquer verdade que deva ser imposta como definitiva.
Mesmo no âmbito da religião, nenhuma verdade se opõe ao que é o sentido de um ordenamento lógico e estruturalmente racional das coisas. A religião não o faz, nada o deve fazer. Os momentos de desrespeito lógico-racional devem ser postos de parte. O que interessa, humanamente, é a defesa de um bem maior possível, bem que é, humanamente, sempre, um necessário bem-comum, que não é compaginável quer com um bem privado individual, privativo do bem alheio, quer com o bem de um grupo parcial, por maior que seja, mas que é o bem de todos, o bem para todos, que permita, na realidade, o melhor bem possível para cada ser.
Assim sendo, há uma necessária dimensão política em bioética (há-a na ética em geral, se não se considerar o ser humano como uma «ilha isolada»), que implica que haja sempre um acordo entre as várias possibilidades de bem dos vários intervenientes. O prejuízo do bem, real ou possível, de um em benefício do bem, real ou possível, de outro – assim indevido – é sempre a escravização tópica do prejudicado relativamente ao beneficiado.
Poder-se-á dizer que o modo comum de relação entre os seres humanos sempre foi tipificado por uma tal relação. A universalização de uma tal forma de relação, a existir, significaria que a humanidade fora, desde sempre, constituída por dois tipos de seres: parasitas e parasitados. Mas é este o verdadeiro registo da agência humana?
Cada ser humano, relativamente a qualquer outro ser humano, é apenas um possível parasita ou um possível parasitável?
Não deverá a relação humana ser toda ela e sempre apontada à promoção exclusiva do maior bem para todos, sem omissão de qualquer um?
É este o desiderato do bem-comum, sem o qual, sem a aplicação do qual, a humanidade nunca passará da tal relação entre parasitas e parasitados, pois haverá sempre um qualquer ser humano – pelo menos um – que será feito mera função do bem de outro ou outros, sem que possa ter direito a um bem próprio seu, nisso irredutível.
Assim, como em todas as questões realmente bioéticas, a linha orientadora lógica e racional do pensamento deve ser a do bem-comum, sem o que é a mesma humanidade que é posta em causa, pois é a negação do direito a uma plena humanidade que está em causa.
As questões profundas no âmbito do aborto voluntário nascem aqui e apenas aqui.
No limite, haverá sempre um conflito entre o direito a um bem qualquer por parte de quem quer abortar e o direito ao bem de isso que poderá ser abortado a partir daquela vontade. O mais decorre daqui.
É, assim, a faceta voluntária desta possibilidade que suscita problemas: um aborto não voluntário, isto é, em que não haja qualquer intervenção humana que o provoque, nunca constitui problema bioético ou sequer ético, limita-se a acontecer e a ter as consequências sanitárias que dele decorrerem, físicas ou não-físicas.
Mas o que, do lado do ente abortável, tem real peso é o seu estatuto ontológico, de onde toda a problematicidade ponderosa decorre: como já vimos, se não for «coisa humana», não suscita qualquer problema ético ou bioético relevante.
Mas qual é o estatuto ontológico desse «ente abortável». Durante muito tempo, não se sabia precisamente o que se passava no seio do útero, pelo que a especulação reinava e podia haver muita da chamada «opinião», coisa nefasta em ciência, ciência em que o que se procura são descrições reais ou pelo menos realistas do que as coisas e os actos são, não afirmações realmente infundadas sobre o que se pensa que seja – esta última parte não é ciência, é mera tolice.
Ora, o desenvolvimento dos meios de imagiologia, aliado ao desenvolvimento dos meios de estudo geral em termos de desenvolvimento celular e histológico, permitiu que se saiba, desde o momento em que ambos os gâmetas se encontram em rota de encontro e, dado esse encontro, e em que o elemento masculino penetra o elemento feminino, isto é, o espermatozóide penetra a membrana citoplasmática do óvulo e se dá a recombinação em uma só dupla hélice das contribuições haplóides de cada um de tais veículos, que tudo o que ali está, quer dizer, o ovo, é tão humano quanto foi cada um dos ovos que originou cada um dos co-progenitores.
Ontologicamente, este material já é biologicamente humano.
A negação desta realidade será paralela às posições que negavam a real humanidade por exemplo aos judeus, só porque a sua herança genética não era tão humana quanto a dos arianos que os julgavam.
Assim sendo, a discussão desloca-se da realidade biológica do ovo humano – não se lhe pode chamar outra coisa – para a consideração moral do que essa realidade pode querer significar.
Deste modo, podemos, se quisermos, afirmar que, apesar de biologicamente ser assim, só há real humanidade quando... e, dado que é impossível determinar um momento de real diferenciação humana, a consideração do que é ser verdadeiramente humano no seio do ventre materno passa de ser algo de biológico para ser algo de político: é através de uma afirmação política que eu defino o que é ser humano em clima intra-uterino (e apenas intra-uterino, porque aquando da eclosão extra-uterina já não há possibilidade de o fazer de modo aceitável).
Assim, independentemente da evidência biológica – onto-biológica –, é possível e é praticada a redefinição da passagem à humanidade do ente intra-uterino de uma forma meramente política. Tal passagem permite que se possa considerar o que seria um homicídio, segundo critério de humanidade biologicamente fundado, em algo de humanamente irrelevante.
Dá-se, assim, uma redefinição dos bens em causa. Do lado do ente abortável, a um bem propriamente humano, sucede um bem qualquer, já não propriamente humano, pelo que não há que o defender, como se deve defender um bem propriamente humano, mormente a própria vida.
Do lado de quem quer abortar, uma situação que se aproxima da dilematicidade, em que a uma vida humana se opõe o interesse de uma outra vida humana, é transformada numa simples situação de mera escolha de remover ou não um corpo físico estranho ao e do seu próprio corpo.
Mas tal passagem não resolve o problema profundo de quem continuar a acreditar que o corpo estranho é tão humano quanto o seu próprio.
A situação que o aborto voluntário sempre implica encontra-se nos antípodas do que é a situação do aborto não-voluntário: neste, não há qualquer responsabilidade por parte de qualquer ser humano; naquele, há sempre uma qualquer responsabilidade de um qualquer ser humano ou de mais do que um ser humano. Há uma escolha, logo, há isso que define a ética como movimento próprio do ser humano. Mas há também um gesto político, pois o movimento ético não se dá no isolamento como que atómico de uma interioridade humana isolada, antes na relação quer com isso que se aborta, seja o seu estatuto definido o que seja, quer com quem coopera para que tal suceda.

Fevereiro de 2018

Américo Pereira

Bioética XII - Eutanásia

O termo «eutanásia» tem a sua origem linguística nos termos gregos «eu» e «thanatos». São dois termos fundamentais da história do pensamento. «Eu» quer dizer, genericamente, «bom», mas também «justo», «regular», ou, se houver uma ligação linguística a uma ideia de origem, quer dizer «nobre», «nobremente», «pessoa nobre». «Thanatos» quer dizer morte.
Já no grego clássico, «euthanatos» ou «euthanatos thanatos» queria dizer uma «boa morte», uma morte doce, sem sofrimento. Existia também o termo «euthanasia» com valor semântico semelhante. Quanto ao verbo «euthanateo», significava «morrer de uma forma doce», «morrer de uma forma boa», ou, tomado o termo literalmente, «eu morro de uma forma boa».
Assim sendo, pode inferir-se que o termo «eutanásia» remete para um sentido de uma morte que seja o «mais boa possível», o melhor possível. Sobre tal, ninguém terá qualquer dúvida. O que importa, então, procurar discernir é o que se deve entender pela bondade de uma tal morte.
Mas não há um oximoro no termo «boa morte»? Oximoro invencível e insolúvel?
Se, do ponto de vista humano – que é o único que o mesmo ser humano pode ter –, a vida representa isso que corresponde ao plano total de possibilidade do bem (tal aplica-se mesmo em visões da realidade que aceitam formas de vida transcendentes à mera esfera física) e a morte a sua contradição, como pode haver uma «morte boa»?
Se tomarmos a vida em termos absolutos, a morte nunca pode ser boa, pois é a impossibilidade da vida. Ora, apenas na vida e como vida isso que é o bem, ou seja, a mesma positividade ontológica do que se é tem realidade. Sem esta realidade, nada.
Neste sentido, a vida é o único bem. Único bem, mesmo que este bem, absoluto, esteja permeado de isso a que, muitas vezes erroneamente, chamamos «mal». Mas nem mesmo estes «males» podem ocorrer sem a vida que lhes serve de único suporte, real e possível. Absolutamente.
Aqui, neste sentido, o oximoro vence e não é possível uma «boa morte».
Mas se tomarmos a vida não já como o absoluto de possibilidade e de realidade do ser de cada ente vivo, mormente o humano, mas como a totalidade (que, enquanto totalidade, é aquele mesmo absoluto) parcelarizada dos momentos que a constituem, então, relativamente, podemos perceber que há uns momentos que são melhores do que outros.
Assim, se bem que a morte seja sempre exterior a qualquer consideração possível neste âmbito, todos os momentos que a antecedem podem ser diferenciados segundo a sua bondade relativa: pode haver uma qualificação diferenciada de todos estes momentos. Uma vida boa, sem reservas, seria aquela em que todos os momentos tivessem sido bons, isto é, o melhor possível para essa mesma vida. Teoricamente, essa vida teria sido vivida sem qualquer sofrimento (ou mesmo dor que provocasse sofrimento). Em termos da grande literatura da nossa tradição, esta figura corresponde ao Job de antes das provações: um ser humano bom, sem sofrimento, só com alegria e felicidade.
É na sequência lógica desta visão relativa da bondade intrínseca parcial dos momentos da vida que faz sentido falar de uma possível «boa morte». Não é a morte em si mesma que está em causa, mas os momentos extremos que a antecedem.[1]
Assim, estes momentos podem ser melhores ou piores relativamente ao bem em causa. E que bem é esse?
Obviamente, o bem geral em causa é a mesma vida. Mas não a vida considerada de um modo qualquer, sequer considerada genericamente. Então, que está precisamente em causa na «eutanásia»?
Na eutanásia, está em causa a bondade dos momentos de vida que antecedem a morte de um ser humano.
Assim, a consideração estreita da eutanásia como uma forma de morte humanamente induzida empobrece o alcance de uma noção que diz respeito a uma possibilidade própria de todo o ser humano e que consiste em poder morrer de uma forma o melhor possível.
Deste ponto de vista, todo o ser humano deve poder morrer segundo uma forma de «morte boa».
Ser morto não é um direito, nunca é um direito, seja em circunstância for, mas poder morrer «bem» é um direito humano universal (esteja ou não tal reconhecido por um forum político qualquer, o que é eticamente irrelevante).
Perspectivadas as coisas relativas aos últimos momentos da vida humana, percebe-se que a «morte boa» implica não uma qualquer forma de morte, mas todas as formas humanamente passíveis de permitir que a máxima bondade própria da vida aconteça.

Eutanásia e cuidados paliativos
Assim, o processo que conduz a uma boa morte inclui em si os necessários cuidados, já impossivelmente curativos, mas necessariamente paliativos, que possam permitir a promoção de uma vida terminal que coincida com a boa morte, morte como processo de deperecimento gradual dessa mesma vida, mas que é realmente a melhor vida possível que o estado da arte pode proporcionar a qualquer ser humano em determinado momento histórico. Tudo o mais fica abaixo do mínimo humano aceitável, pelo que é inaceitável, qualquer seja a sua forma ética ou política.
Percebidas as coisas deste modo, facilmente se entende que a verdadeira eutanásia coincide com a prestação de cuidados paliativos, que não interferem imediatamente – a interferência mediata, em toda a sua plenitude, a única que conta, é impossível de dominar – com a estrita duração da vida, mas proporcionam a esta, enquanto dura, a melhor qualidade propriamente humana que é possível, então, ser prestada.
Note-se que o advérbio de modo «humanamente» aqui usado não contempla qualquer forma de desculpas económicas ou políticas outras, mas apenas o que é o estado da arte quanto à possibilidade de emprego de tais cuidados paliativos, para os quais devem existir os meios necessários: tal é o papel de quem governa as cidades, as tendenciais comunidades humanas, sob pena de não estarem a cumprir a sua tarefa. O papel do prestador de cuidados não é o de um economista ou gestor, mas o de prestador de cuidados de saúde. Imagine-se a inversão dos papéis.

De volta à eutanásia como questão
É já fácil perceber que muitas das chamadas questões que podemos encontrar na literatura especializada em torno da «eutanásia» não passam de inúteis perdas de tempo com problemas que surgiram escusadamente, porque o sentido de eutanásia como vida boa que se encaminha terminalmente para a morte não foi seguido.
Se os necessários cuidados paliativos forem aplicados, a maioria esmagadora dos ditos problemas que implicariam a solução de «eutanásia» como forma de morte humanamente provocada simplesmente desapareceria. Pode objectar-se que, sendo tal verdade, no entanto, as condições ambientes, económicas, éticas e políticas, impedem que tal possa suceder, pois são elas que provocam situações que reclamam a utilização da eutanásia em seu sentido de morte provocada.
Mas a resposta tem de ser inequívoca: as condições que a montante criam os problemas de realidade humana que reclamaria uma morte antecipada não são de relevância bioética, mas de relevância ética geral, política e económica e é como tal que devem ser dirimidas.
Mais: nunca deveriam existir. Existindo, devem ser eliminadas o mais brevemente possível. O prestador de cuidados de saúde nunca deve colaborar com a perversão das condições, sejam quais forem as desculpas apresentadas. Apenas uma real inexistência de recursos pode justificar a impossibilidade de aplicação dos cuidados de saúde necessários, também os de tipo paliativo. Mas esta real inexistência anula a possibilidade de qualquer existência de problemas bioéticos ou éticos em geral. Não podem sequer pôr-se.
Sejamos claros: tal situação não deve existir, salvo qualquer razão catastrófica independente da vontade humana, pelo que o recurso a medidas que lesam o bem de seres humanos só porque outros tal provocaram não é lícito, funcionando como uma aceitação tácita e prática desses procedimentos, quendo se deveria trabalhar para que fossem anulados, o que anularia a necessidade de sequer se pôr a questão de matar alguém por tais ignóbeis razões.
Retiradas estas ignóbeis razões e outras eventuais, como, por exemplo, o recurso a formas de “eutanásia” apenas como forma de aniquilação de seres humanos indesejáveis ou de cuja morte esperamos benefícios – assim, ilícitos – como foi, por exemplo, a utilização do famigerado «Programa Eutanásia» por parte dos nazis,[2] apenas restam os casos em que os cuidados paliativos não são capazes de aliviar o sofrimento e os casos em que há uma vontade qualquer, do paciente ou de outrem, que insiste na morte do mesmo paciente, independentemente dos cuidados de tipo paliativo ou outros gerais precisamente adequados em termos de saúde.
O primeiro caso constitui algo de verdadeiramente dramático e que tem um necessário desfecho em que dificilmente poderá haver uma boa morte. Quer se opte por uma qualquer forma artificial de cessação da vida quer o paciente suporte até à morte o sofrimento, impossível de se mitigar para além de um certo ponto, não há nem pode haver, por definição, um bom fim para tal ser humano. A sua morte ou será atingida através de um percurso final de sofrimento ou será cessada através de um homicídio, mesmo que seja apoiado por uma qualquer lei.
A dimensão trágica da existência e vida humana não desaparece por meio de voluntarismo, por mais bem-intencionado que seja, ou por decreto.
Há momentos na vida de certas pessoas que são trágicos, dolorosos e plenos de um sofrimento excruciante, sem que se possa fazer coisa alguma para que assim deixe de ser, sem que se elimine o que é propriamente pessoal na pessoa em causa.
Assim, posso pensar que se pode reduzir um ser humano, numa tal situação, a um mero sujeito de aplicação de drogas (futuras totalmente eficazes, quem sabe?) que lhe retirariam quer a dor quer o sofrimento por ela causada, assim como o sofrimento causado pela sua mesma circunstância de moribundo, mas não posso deixar de pensar que estaria a anular a sua consciência ou a mudá-la de tal maneira que anulasse ou diminuísse de tal modo o seu estado propriamente mental-espiritual que já não fosse possível discernir nele qualquer evidência da presença de um ser humano que não meramente corporal. Uma tal redução seria aberrante.
A outra hipótese não passa de uma forma de homicídio legalmente permitido.

Eutanásia como homicídio legal
Apesar da imensidade do que se diz e escreve sobre este assunto, que é complexíssimo na sua realidade casuística – que não é qualitativamente modificada pela existência de tabelas procedimentais, legais ou deontológicas –, a sua realidade principial é muito simples: se se trata de abreviar a vida de uma pessoa através de um procedimento artificial (logo, cultural, logo, humano), trata-se de um homicídio, de um verdadeiro assassinato, quaisquer que sejam as desculpas que se avancem para o justificar. Estas podem ser infinitas.
O caso de esta morte artificial ser administrada pelo próprio é tratado no ponto seguinte. Neste, tratamos do caso em que tal morte é administrada por um terceiro, qualquer seja.
Trata-se, assim, de uma morte ministrada, logo, de um literal homicídio. Sobre isto não é possível haver qualquer dúvida. Pode é argumentar-se que se trata de um homicídio que não é um crime, pois a lei isenta-o de tal classificação. Tal é possível e real onde foi realizado.
Mas não nos podemos esquecer de que a consideração legal pode ser qualquer uma: podemos tornar legal o que queiramos e ilegal o que queiramos. Para tal, basta seguir os procedimentos formais – e eventualmente materiais previstos na sua mesma forma – necessários para que tal se operacionalize. Podemos fazer o que quisermos, se o critério for apenas este.
Podemos legalizar o infanticídio, a eliminação de idosos a partir, por exemplo, dos setenta anos, ou mesmo das pessoas com menos de 175 centímetros de altura. Podemos. Mas tal possibilidade não faz com que um homicídio deixe de ser o que é. Um homicídio. Pode, assim, não ser considerado um assassinato, mas não deixa de ser um literal homicídio. Lembramos que tal foi a escolha do regime nazi relativamente a certos tipos de indesejados.
Assim, pode optar-se por não considerar crime um gesto de administração de morte – a que se chamará «eutanásia» ou outra coisa qualquer –, mas tal não elimina a realidade de morte artificial provocada e realizada por um qualquer terceiro ser humano. Esse ser humano matou um outro, independentemente da razão invocada. Tal é inegável.
A legalização de um tal tipo de gesto abre a porta à possibilidade de analogamente se fazer algo de semelhante sempre que houver situações semelhantemente dramáticas ou tal se simule de uma forma convincente. Que acontece ao sentido universal e transcendental da absoluta sacralidade (laica como religiosa) e inviolabilidade da vida humana, único sentido que impede que nos matemos universalmente uns aos outros?
Cabe a cada ser humano a escolha, na certeza de que nunca lei alguma fará por si o trabalho ético e político que lhe compete, que é o seu, inalienavelmente.

Suicídio e eutanásia
O suicídio, que não faz sentido ser definido como um «direito», pois seria um direito que atentaria contra esse que é o direito fundamental de todo o ser humano, o direito a ser e a ser na forma da vida, de que não há substituto possível, é, no entanto, uma trágica possibilidade, impossível de eliminar: enquanto houver seres humanos, haverá a possibilidade de se suicidarem. Tal é incontrovertível.
Assim, perante o tipo de situações que podem originar uma forma de tentativa de sua resolução através do recurso à morte, o suicídio surge como uma possibilidade. Em termos meramente humanos, dado o melindre propriamente humano do que está em causa, bem como a real impossibilidade de se ser universalmente eficaz diga-se o que se disser, pouco mais deve ser dito acerca do suicídio, a não ser que se deve fazer todos os possíveis para que tal situação, de que não há retorno possível e porque não há retorno possível, ocorra, sabendo, no entanto, que a última palavra dependerá sempre do sujeito humano em causa, enquanto tiver a possibilidade de a realizar.
E quando essa possibilidade não existe e há uma vontade de morrer? Não se pode ajudar alguém a cumprir o que deseja? Se a questão é posta de um ponto de vista físico, a resposta, é: claro que se pode. Mas, ao fazê-lo, está-se a cometer um homicídio, que recai sob as considerações já avançadas no ponto anterior.
Qualquer prescrição jurídica apenas consegue enquadrar formalmente tal situação, não interferindo realmente na possibilidade física da realização do movimento em causa.
Do ponto de vista ético e político? Será que se deve fazê-lo?
A resposta só pode ser dada pela própria pessoa que enfrenta tal questão, sabendo que o que está em causa, em última instância, é a vida de um outro ser humano, com todas as consequências que tal implica. É algo que nenhuma lei pode eficazmente modelar, por maior que seja a sanção proposta ou prémio positivo proposto. Diz respeito à consciência humana a resolução desta questão, escolhendo segundo o que entender seja o maior bem em causa. Dificilmente se pode encontrar um bem que seja realmente maior do que o do absoluto da vida humana. Mas pode haver quem assim não intua a realidade das coisas.

Acompanhamento terapêutico paliativo em vez de eutanásia
Para quem entender que a vida humana tem um qualquer paralelo em termos de importância ontológica, pode haver a constituição de um dilema entre a manutenção da vida de uma pessoa e isso de negativo a que tal manutenção obriga. Em tal ocorrência, a questão da morte artificialmente administrada pode surgir como opção com sentido. Sobre isto, já discutimos acima.
Mas para quem percebe que ontologicamente nada se pode comparar à vida humana, então, o procedimento que imediatamente decorre, logicamente, é a administração de cuidados – que são terapêuticos, pois tratam algo que não é meramente sintomático ou sinalético, a saber, a realidade da dor e do sofrimento – paliativos, de uma forma precisamente adequada ao fim a que se destinam.
Esta adequação elimina os néscios debates acerca da possibilidade de certos tratamentos poderem induzir a própria morte. Primeiro, no âmbito terapêutico geral, qualquer ministração de um qualquer cuidado pode conduzir à morte. Tal é impossível de controlar. Segundo, no caso dos cuidados paliativos, o cuidado visa apenas evitar a dor e o sofrimento, mas de uma forma real, isto é, que tenha um efeito adequado.
Se, por exemplo, não se ministrar um fármaco em quantidade suficiente para se atenuar uma determinada dor até um limite que seja pessoalmente suportável por aquele doente em causa, não se está a cumprir o que se deveria estar a cumprir. O tratamento é inadequado. Adequado é ministrar o necessário para que o fim visado seja atingido.
Os efeitos totais são imprevisíveis, sem formas de pensamento mágico, pelo que tais imprevisíveis efeitos não devem servir de desculpa para não administrar o que se deve administrar, como se deve administrar, para que o efeito pretendido seja atingido. Quanto ao resto, a natureza própria da vida e da doença seguem o seu caminho natural.
O tratamento desadequado ou precipita a morte ou deixa por tratar uma dor e um sofrimento que devem ser tratados. Qual o modo adequado, caso a caso? Tal é impossível de ser sabido antecipadamente. Mas é por tal que o pessoal de saúde é constituído por seres humanos e não por outra coisa qualquer. Nada pode substituir a decisão e a capacidade técnica humana a ela conjunta. Quem não está para tal capacitado deve escolher uma outra área de trabalho.

Testamento vital
A possibilidade de alguém decidir de uma forma definitiva do destino a dar a si próprio aquando de um qualquer momento futuro, imprevisível como tal e na sua mesma riqueza de detalhe e possibilidades, suscita a questão da irreversibilidade dessa mesma decisão. Todas as outras possíveis questões derivam desta.
A consequência da decisão exarada no testamento opera numa altura em que o sujeito em causa não pode já decidir sobre o seu futuro possível. Assim, o testamento implica uma obrigação diferida no tempo, sem que seja possível verificar se tal decisão se mantém.
Pode dizer-se, e bem: mas é precisamente isso que está em causa e é precisamente o vazio decisional que se quer evitar, através da soberana manifestação antecipada da vontade da pessoa.
Mas, se no caso de um eventual suicídio, tudo o que seja topicamente possível deve ser feito para que a pessoa reconsidere e possa deixar de querer matar-se – sem o que, cada vez que houvesse um possível suicida, tal não se aplicaria, podendo mesmo dever ser auxiliado (o que parece comummente absurdo), pois se acredita que é possível, até ao momento extremo, que a pessoa possa mudar de parecer e de intenção, como não aplicar analogamente o mesmo princípio ao caso de quem se encontra numa situação abrangida pelo testamento vital?
A questão não é fácil e deixamos apenas este questionamento, para que possa levar cada pessoa a reflectir no que está em causa.
Mas não haverá muitas eventuais supostas situações em que o testamento vital se aplicasse que não passam de situações falsamente adequadas a tal?
Faz sentido não haver intervenção qualquer sempre que alguém, e se é alguém é porque está vivo, assim o determina? Se sim, porque não generalizar o princípio? Como pedir a um interventor que intervenha numas ocasiões e noutras não: não é o mesmo típico bem que está em causa?
Não deverá ser deixada à pura e honesta criteriologia científica e técnica – sempre dependente de um qualquer estado da arte – a indicação do que é salvável ou não? Sendo salvável, não é sempre de salvar, como preservação do princípio do incomparável estatuto da vida?

Américo Pereira



[1] Porquê estes «momentos extremos que a antecedem», ainda que a sua definição esteja condenada a ser sempre vaga? Porque, sem a consideração necessária desta extremidade da vida em sua finalização, nada obstaria a que se considerasse toda a vida, desde o seu início, como um avizinhar da morte – o que se faz e pertinentemente em outros âmbitos, mas que, aqui, anularia todo o esforço reflexivo –, ou seja, toda a vida passaria a ser vista como uma, mais breve ou mais longa, «eutanásia». Esta proposta de leitura da vida é muito interessante, mas não como forma de dissolver a questão da eutanásia como é posta correntemente.
[2] Sobre este assunto, fundamental para que se entenda a perversidade que pode estar associada à morte antecipada de seres humanos, a pretexto de um qualquer seu bem, ver, por exemplo, LIFTON Robert Jay, The Nazi Doctors. Medical Killing and the Psychology of Genocide, s. l., Basic Books, 1986 (contempla excelente bibliografia); REES Laurence, Auschwitz. The Nazis and the Final Solution, London, BBC Books, 2005, onde podemos ler, na p. 75: «Estes prisioneiros foram mortos porque recaíram sob a alçada do programa nazi de “eutanásia de adultos”. Esta operação de assassinato teve a sua origem num decreto do Führer que autorizava os médicos a escolher pacientes com patologias físicas ou mentais crónicas e a matá-los.» (trad. nossa).

Bioética XI - Vida e Morte

Neste texto, trataremos de questões relativas à definição de vida e morte e à sua relação, bem como à relação destes dois termos com temas práticos e pragmáticos de bioética.
Após milhares de anos de interrogação acerca do que seja a vida, ninguém sabe exactamente o que a vida é. As questões e as eventuais respostas surgiram formuladas em termos físicos, metafísicos, religiosos: milhares de respostas, todas provisórias, surgiram. Nenhuma destas respostas diz o que a vida exactamente é.
Todas elas, cada uma em seu âmbito e nível próprios, contribuem, no entanto, para fazer com que o ser humano se aproxime, como que de uma forma infinita e sempre precária, de isso que é a noção mesma do que seja a vida.
Propositadamente usamos o termo «noção» distintivamente porque, na sequência de todo o trabalho de aproximação ao que seja a vida, muitas «ideias», «conceitos», «definições» acerca do que a vida seja foram produzidos. Em cada um de seus âmbitos e níveis de utilização, estes produtos culturais têm grande importância, por vezes decisiva, pois, do que identifiquem como propriamente vivo muito pode depender e depende.
Podemos dizer, assim, que estes produtos culturais são eficazes onde são utilizados: um determinado conceito de vida é eficazmente útil no âmbito em que é utilizado, pode permitir toda uma agenciação que, precisamente, sobre ele se funda. Mas tal conceito não coincide com o que a vida propriamente dita seja. Dependem de uma qualquer noção logicamente anterior de o que seja «vida», mas não transcendem tal noção.
Quer isto dizer que qualquer seja a noção de vida que se tenha, tal noção não se confunde com a vida nem sequer dá da vida algo como uma definição. Vive-se saboreia-se a vida como vida, mas seria preciso distância epistemológica relativamente ao que a vida é para se poder defini-la objectivamente. Tal não é possível porque o definidor possível da vida, precisamente, é vida em acto: nós, os seres humanos.
O mesmo se pode dizer de todos outros quaisquer produtos culturais relativos à aproximação gnosiológica e semântica ao que seja a vida.
Mas há que ter em conta que a tomada de tais produtos culturais como formas absolutas de verdade pode pôr em causa o que a vida em si mesma seja: por exemplo, posso fundar uma religião ou um movimento partidário que se funde sobre um conceito especial de vida que elimine de seu âmbito certas formas que nocionalmente estejam incluídas nisso que comummente se considera vida. O perigo é manifesto.
Mesmo em esferas políticas tão melindrosas como a religião ou a vida social laica, que dependem sempre de uma qualquer noção universal ou pelo menos universalizável de vida, o único meio capaz de evitar que se caia na tentação de produzir produtos culturais definitórios do que seja «vida» que ponham em causa possíveis formas de vida porque lhes retiram a realidade entitária propriamente vital, é o uso de uma omnipresente prudência, que evite que se retire a dignidade ontológica de vida a algo que possa ser vida. O remédio reside no prosseguimento do estudo acerca da condição vital de tal realidade.
Esta atitude prudente aplica-se a todo o nível possível de abrangência da vida, desde o mais ínfimo estrato microscópico ao mais abrangente espaço macroscópico conhecido, a própria biosfera; estendendo-se esta  possivelmente a todo o universo, onde seja possível encontrar vida como a conhecemos ou sob outras quaisquer formas. Vida e ecologia têm uma relação profunda e vasta, que não deve ser ignorada.
Assim, e analogamente ao que se passa com a definição do que seja propriamente «humano», com perigos análogos – lembremo-nos das tentativas de redefinição da noção de humanidade operada pelos nazis, por exemplo –, a noção do que é a vida pode desempenhar e desempenha um papel fundamental em termos éticos e políticos. Mas também em termos estritamente bioéticos.
Para que uma ética e uma política acerca da vida possam ser estabelecidas e operacionalizadas, há que se possuir uma noção do que seja a vida o mais próxima possível do que a vida propriamente dita seja. Ora, sabemos que a noção que possuímos é imperfeita. Mais, como já foi apontado acima, sendo nós não apenas o sujeito da investigação acerca de isso a que a noção diz respeito, mas a «própria coisa em estudo», não temos e nunca poderemos ter uma distância epistemológica suficiente para que possamos nunca nos confundir com o que estudamos.
O nosso estudo acerca da vida é o estudo da vida por si mesma, através de um elemento seu capaz de a/se estudar enquanto e como vida. Mas o que não é possível é isolar a vida de quem a estuda, para que possa ser estudada sem a presença necessariamente implícita de quem estuda. Esta obstacularidade é impassível de ser vencida.
Deste modo, teremos, sempre, apenas uma aproximação infinitizável e infinitamente aperfeiçoável – se for essa a escolha – à realidade da vida, pelo que a noção que vai emergindo acerca do que a vida seja será sempre dependente deste estatuto de impossibilidade de apreensão completa. Por exemplo, nunca será possível uma definição matemática do que seja a vida enquanto tal, embora sejam possíveis muitas equações parcelares acerca de fenómenos vitais. No limite, a equação matemática “biológica” que possa distinguir o vírus de uma pedra coincidirá com o mesmo vírus real: a realidade do vírus é a sua mesma equação vital. Mas isto não é o mesmo que compreender o que é que distingue o vírus da pedra, que o aproxima da noção de vivente, isso mesmo que afasta a pedra dessa mesma noção.
É claro que há especulações que defendem que tudo é vida e que mesmo isso que aparentemente escapa a uma nocionalidade vital é, ainda assim, vivo. Mas as especulações que dizem que todo o A é B mais não fazem do que anular a diferença que faria com que A e B fossem precisamente diferentes, pelo que dizer que «tudo é vida» é anular a especificidade própria da vida, eliminando-a, assim, também.
Ironicamente, poder-se-ia dizer que «vida» é tudo o que não está «morto». Mas tal é errado, pois a própria noção de «morte» depende de uma noção de vida de que a morte é não o contrário, mas o contraditório, no entanto historicamente situado sequencialmente. Quer isto dizer que só faz sentido falar em «morte» de algo que fora propriamente «vivo». O que nunca foi vivo entitariamente não pode ser dito como morto, apenas como «não-vivo».
E é ao «não-vivo» que a «vida» se opõe, não contrariamente, mas contraditoriamente: quer isto dizer que nunca podem co-existir num mesmo estado ou movimento ontológico. Ou se está vivo ou se está não-vivo.
Ora, esta distinção fundamental e absoluta tem consequências muito importantes em bioética.
Apenas a prudência na definição do que são categorias operacionais de intervenção em saúde, no que à distinção entre o «vivo» e o «não-vivo» diz respeito pode permitir, tanto quanto é humanamente possível, uma agência interventiva que respeite de uma forma tendencialmente absoluta isso que é o direito de um ser humano à sua vida, isto é, porque são apenas modos diferentes de dizer a mesma realidade, à sua existência, ao seu ser.
Assim, e dependendo do «estado da arte» da capacidade de diagnóstico a possível declaração de alguém como já não estando vivo, ou seja, dependendo, em muitos casos, de uma forma muito fina de análise a distinção entre o estar vivo e o estar não-vivo de uma pessoa, há que procurar quer uma cada vez maior precisão de diagnóstico quer uma observância o mais estrita possível desse mesmo diagnóstico.
Este mesmo tipo de rigor na lide com a distinção entre o estar vivo e o estar não-vivo impõe-se em todas as possíveis situações – e são, na realidade, infinitas as possíveis, quer na sua concretude quer mesmo na sua tipificação – em que tal distinção tem de ser feita. Não são aceitáveis quaisquer desculpas, pois, assim que surgem os métodos melhorados de diagnóstico, estes devem ser imediatamente utilizados, sob pena de se estar a violar o direito fundamental que toda a pessoa tem, que, aliás, se confunde com o seu mesmo ser, o direito à vida, a ser.
Não são, assim, aceitáveis quaisquer argumentos colaterais, por exemplo de tipo económico (geralmente apenas financeiro), pois, não é por se invocar uma qualquer escassez, que quem não cumpre com a obrigação do respeito de direitos fundamentais fica exonerada de os ter cumprido: manda a prudência que os recursos sejam alocados segundo critérios de serviço do bem-comum, de que o direito a ser é o maior bem possível.
Antes de se exaurirem todos os meios económicos que servem bens secundários, não há o direito de invocar razões de índole económica para se não prover isso que serve o primeiro dos direitos.
Por maioria de razão, todo o acto de destruição de riqueza em termos de bem-comum por via da corrupção, que, assim, é desviada do serviço ao bem primeiro que é a saúde humana, constitui um crime de lesa-humanidade, quer tal transpareça em códigos de humana lei quer não. De lembrar que estes códigos são sempre produto de oligarquias ou tiranias e não consubstanciam em forma legal senão os interesses de quem os escreve.
O que ficou dito acerca do serviço económico aos meios de diagnóstico distintivo de vida e não-vida, aplica-se, com as devidas adaptações, a todos os bens de saúde, que são prioritários relativamente a quase todos os outros, pelo que têm de ser servidos como devem.
É a mesma prudência que deve orientar as decisões em áreas como a recolha de órgãos para transplante, a cessação ou prosseguimento da ministração de cuidados a pacientes terminais, a outorga de escalonamento para atendimento em situações de catástrofe, em que os meios à disposição são incontornavelmente escassos, e os casos-limite do aborto e da eutanásia.
Nenhum outro princípio senão o da necessária salvaguarda do maior bem, humanamente possível de salvaguardar, deve ser usado. O uso deste princípio, salvo situações de tipo trágico, em que não há qualquer resposta humana que possa evitar ter de escolher entre vidas, é teoricamente suficiente para assegurar o maior bem-comum possível.
Mas momentos há em que alguém tem de tomar a decisão de escolher entre vidas e nada ou pessoa alguma pode escolher na vez daquele que as circunstâncias puseram na situação de escolha.
Desde já se diga que, nestes casos, a escolha de não escolher implica sempre um qualquer mal maior, em vez de um outro mal, menor, que é, imediatamente, um bem maior. E, se este bem – que é um mal menor – é um bem relativo, relativamente ao maior bem possível, no que é, e mesmo sendo um bem relativo, só porque é um bem, é-o absolutamente, no bem e como bem que é, pelo que representa algo cuja realidade, fruto de uma decisão positiva, não pode existir sem essa decisão e o movimento que essa decisão origina.
Um caso paradigmático – e facilmente analogável para outras situações semelhantemente dramáticas – é aquele que se pode exemplificar da seguinte maneira: numa ocorrência catastrófica, inequivocamente, um socorrista tem de administrar plasma a dez pessoas para as poder salvar, mas dispõe apenas de plasma para cinco; sabe imediatamente que cinco pessoas vão morrer; sabe que, se não decidir quais salvar e quais não salvar, irão morrer as dez; o princípio do bem-comum manda que salve cinco pessoas; se essas pessoas forem todas muito semelhantes, não haverá qualquer critério não-subjectivo que o ajude a escolher; ainda assim, tem de escolher; se o fizer, apesar de tudo, salvará cinco dessas pessoas; se o não fizer, será responsável não pela morte de cinco, mas pela morte de todas, pois não procurou salvar qualquer uma.
Sem mais, deve procurar salvar as cinco que puder. Salvas essas cinco pessoas, mortas as outras cinco, nada lhe poderá retirar quer a alegria de ter salvo quem salvou quer a angústia de não ter salvo quem não salvou, mesmo que a responsabilidade não seja sua, agora que agiu, fazendo o que era possível fazer, absolutamente. Mas tal faz parte da condição trágica do ser humano, que implica que não seja possível encontrar saídas positivas para todas as situações adversas que se nos deparam.
Hoje em dia, tal constitui, muitas vezes, motivo até para desculpar a abstenção de fazer o bem possível; um sábio grego antigo, habituado a este sentido trágico, limitar-se-ia a sorrir tristemente e a fazer o que fosse possível.
Assim, no âmbito da bioética, a preocupação filosófica com a morte não tem qualquer relevância operacional, servindo, outrossim, como meio de dignificação do trabalho em favor da vida. O trabalho que se pede ao pessoal ligado à saúde não consiste em reflexões sobre a morte, mas em procurar servir a vida, de modo a que a morte surja apenas quando naturalmente deva surgir, no serviço à vida como serviço ao melhor bem possível de cada pessoa.
A bioética deve preocupar-se com o serviço à vida, promovendo-a por todos os meios, tendo presente que tanto melhor a serve quanto mais essa mesma vida for um bem, for boa.
É por esta razão que questões como o desacerto na prestação de cuidados a doentes considerados pelo estado da arte – sempre em revisão – como terminais, isto é, como não-salváveis – esta categoria é, assim, histórica e pode mudar – deve seguir o prescrito relativamente ao acerto fino quanto à relação dinâmica entre o estar vivo e o estar não-vivo, não devendo a vida ser inutilmente prolongada quando já não há possibilidade de esta mesma vida poder naturalmente subsistir, transformando-se o paciente, isto é, a pessoa, numa entidade estranha e indignamente biónica, com prolongamento do sofrimento.
Sabemos que a consideração casuística faz sempre relevar dramas inauditos e imprevisíveis, mas, como princípio fundamental, não deve ser prestado cuidado de tipo curativo a estados de saúde que se sabe serem irrecuperáveis perante o estado da arte curativa historicamente situado.
Estes casos necessitam de acompanhamento paliativo, que alivie ao máximo isso que é um sofrimento evitável e indignamente mortificante. Nem sequer temos em consideração a hipótese de a opção de tratamento, sabendo-se já da impossibilidade da cura, se dever ou a razões de ludíbrio económico ou mesmo de simples estupidez decisória, por não merecerem tratamento ético. Tal simplesmente não deve existir e, se existe, deve ser anulado o mais brevemente possível, eliminando as causas.
Não se dignifica a vida humana desnaturalizando-a. Se a morte não faz parte própria da vida, embora a sua realidade futurível faça, o caminho para a morte confunde-se com a própria vida e este caminho deve poder ser cumprido com a máxima dignidade humana possível, pelo que todo o encarniçamento para prolongar o que naturalmente não tem prolongamento possível, faça a cultura – isto é, o labor dos seres humanos, o que fizer – é um atentado contra a mesma vida e a sua dignidade.
Assim, se bem que a casuística seja terrivelmente difícil, o princípio básico a respeitar é muito simples: dado o estado da arte, sendo uma vida possivelmente salvável – salvo reais imponderáveis –, deve ser tudo feito para que se salve; se não for, deve passar-se imediatamente para a administração de cuidados paliativos.
A vontade seja de quem for não tem aqui qualquer relevância, pois não é por o próprio ou alguém na sua vez querer muito que se salve que, se não possível salvar-se, se vai salvar. Mas também não é por alguém ser de opinião que não se deve tentar salvar, caso seja possivelmente salvável, que se vai deixar de tentar salvar a pessoa.
Nada do que de fundamental aqui interessa é de ordem psicológica ou sociológica e nada senão a matriz não-subjectiva do estado real da arte se deve pronunciar quanto à salvabilidade. Feito este pronunciamento, resta aplicar o que for logicamente apropriado. Toda a alternativa é humanamente injustificável.

Sugerimos a leitura dos seguintes textos: Capítulo «Eutanásia», da obra 10 palavras chave em bioética, de Javier Gafo, Palheira, Gráfica de Coimbra, 1996, pp. 95-141; os capítulos «Life and Death Issues» e «Killing and Letting Die», da obra Bioethics. An Anthology, de Helga Kuhse e Peter Singer, Malden, Blackwell Publishing, 2006, pp. 257-300.


Fevereiro de 2018
Américo Pereira

Bioética X - Transplantação e identidade humana

Introdução
A transplantação pode ser vista como um caso particular da procura de substituição de funções próprias do corpo humano através da aplicação de estruturas alternativas, neste caso, de tipo biológico e especificamente humano, seja na auto-transplantação seja na hetero-transplantação.
Deste ponto de vista, um transplante é redutível a uma “prótese” biológica especificamente humana (ou, no caso de transplantação a partir de fontes biológicas não-humanas, humanamente adaptável).
No caso da utilização de estruturas retiradas da própria pessoa a transplantar, não é simplesmente possível suscitar qualquer questão acerca da identidade humana em jogo: todo o material biológico é próprio, pelo que se mantém totalmente a identidade quer no seu sentido individual-pessoal, quer no sentido específico.
Mas, nos casos em que o material biológico é de proveniência terceira (como também nos eventuais casos de intervenções de tipo «biónico» ou aparentados possíveis), o questionamento possível é evidente e imediato e tem de ser respondido.
É patente que o bem maior conseguido por uma transplantação, que não origine qualquer forma de dano quer no próprio transplantado quer em qualquer terceiro, é, assim, inquestionável, desde que os resultados esperados coincidam com isso que fora proposto como finalidade, tendo em consideração que ninguém irá racionalmente propor algo que não implique, quando realizado, um maior bem possível racionalmente esperável para a pessoa em causa.
Se a questão da identidade se põe – ainda que de forma meramente especulativa – com maior acuidade apenas nos casos de eventual transplantação de cabeça-resto do corpo, dada a crença relativa ao papel identificador do encéfalo, no entanto, quer a nível físico-biológico quer a nível do sentido identitário próprio de cada pessoa, a questão pode surgir relativamente a outras formas de transplantação e, surgindo, há que poder ser respondida de uma forma racional.
Do ponto de vista bio-ético, do lado do transplantável, não há qualquer outra questão possível. Do lado da origem do material a transplantar, se houver o respeito pelos critérios técnicos relativos à salvaguarda do direito à vida de eventuais fornecedores[1] terceiros – os critérios, aqui, têm de ser apenas técnicos, pois todos os outros são perigosamente manipuláveis, por causa da sua subjectividade inerente –, também não há qualquer questão bio-ética pertinente.


A identidade biológica
A identidade biológica não pode ser confundida, ao nível do indivíduo, qualquer seja, mormente o indivíduo humano, com a sua definição hereditária própria: a identidade de cada indivíduo biológico – também da pessoa humana, enquanto indivíduo biológico – integra a sua realidade biológica como um todo, que inclui todas as relações que possibilita e que sobre ela se alicerçam com todas as outras realidades que a acompanham, a saber, os diferentes meios propriamente transbiológicos em que se integra, como, por exemplo, a comunidade política na sua vertente não biológica, a movimentação histórica geral, mas também o meio ambiente físico, biológico trans-humano.
Tudo isto, num sistema relacional que assume proporções literalmente imensas, constitui a realidade própria de cada entidade biológica humana; cada um dos seus elementos é inalienável; é da relação dinâmica e cinética constante entre todos eles que ressalta a identidade própria de cada entidade sob o ponto de vista biológico.
Esta não é apartável de isso com que se relaciona e a sua consideração isolada é errónea, fazendo que todo o pensamento que sobre tal erro se construa e todo o movimento de intervenção que o acompanhe sejam, por tal, pervertidos do fim a que se deveriam destinar: o alvo pertinente é simplesmente outro, a tal realidade entitária global individual, que, assim, se falha.
Deste modo, o sentido do que constitui esta identidade biológica é fundamental do ponto de vista bioético, pois depende de uma atitude metodológica que não é mágica ou automática, antes se deve a uma qualquer tomada de decisão, que é sempre eticamente relevante e eticamente fundada (mesmo que a argumentação em que se apoia o não seja).
O modo como se decide encarar isso que é a identidade biológica de algo é eticamente o passo mais relevante que pode haver, pois apenas a partir dele e sobre ele se pode avançar.
Este momento é claramente mais relevante, por exemplo, no caso da definição da identidade biológica de um habitante uterino, mas é significativamente importante em termos da transplantação como momento em que se define se, perante uma determinável e determinada identidade biológica, se avança ou não para uma transplantação.
Estas considerações parecem demasiado afastadas do concreto da realidade e, assim, dispensáveis, mas não o são: percebemos a sua importância quando tudo deixa de correr ética e politicamente bem – isto é, no sentido estrito do bem-comum – e surgem movimentos estranhos, que põem precisamente em causa o sentido do bem-comum e da pertinência da pertença de certos indivíduos humanos ou classes de indivíduos humanos, isto é, de certas formas identitárias biológicas e biologicamente fundáveis, a esse mesmo bem-comum.
Lembremo-nos apenas da relação, a este respeito, de um membro do Ku Klux Klan com um negro, ou de um membro das SS com um judeu. Transplantar tais “entidades”? A resposta seria óbvia.
Mais não necessita de ser dito.

A identidade propriamente humana
Muito do que diz respeito à identidade propriamente humana da pessoa humana ficou já estabelecido no ponto anterior, no que à sua parte propriamente biológica diz respeito, na relação com tudo o que com tal realidade co-existe.
É precisamente no âmbito desta co-existência que o fundamental da definição identitária da pessoa humana se encontra. Se bem que a parte propriamente biológica da pessoa humana seja indispensável para a sua definição identitária – não só não é possível uma identidade humana sem a assunção da sua parte biológica como não é possível a realidade da pessoa humana sem esta mesma parte –, esta não é redutível àquela.
Para além de considerações de tipo estritamente não filosófico, que aqui não são pertinentes, é evidente a necessidade de consideração de tudo o que diz respeito ao desenvolvimento propriamente histórico da mesma pessoa humana. Neste desenvolvimento, o que há de mais importante, como propriamente humano, não é a dimensão biológica, sem mais, mas o que essa dimensão permite, como sua base existencial, que se desenvolva, a partir dela.
O que importa verdadeiramente é a história ou a narrativa semântica desse ser como propriamente pessoa, de que faz parte a dimensão biológica como dimensão ontológica própria e irredutível, mas que não é exclusiva e à qual não se podem reduzir todas as outras.
O que interessa é o sentido que coincide com o que é a sua identidade própria e que coincide com o que é a sua realidade como entidade propriamente humana.
Desta entidade, que é identidade narrativa, lógica, semântica, faz parte a dimensão biológica, com tudo o que esta comporta. Mas não como um fim em si mesmo, antes como um meio de construção dessa mesma entidade e identidade semântica.
Note-se que não há, aqui, qualquer forma de dualismo ou outra partitiva semelhante, antes a necessária assunção de uma unidade dinâmica e cinética, integrada e aberta à novidade, de tudo o que constitui a mesma realidade própria de um determinado ente humano.
Assim, e como é evidente, a integralidade corporal própria é algo que necessariamente tem de integrar uma tal identidade. Não confundir com uma qualquer forma de “normalidade” padrão, estereotípica, em que todos tenham de possuir as mesmas características biológicas. No modo como entendemos esta questão, a «integralidade» a que nos referimos pode ser vista segundo um modelo assim tipificado, mas pode também assumir o tesouro individual próprio de cada pessoa, por exemplo, o modo diferente como nasceu: sem membro tal ou membros tais, com deformidade outra tal, etc.
Quer isto dizer que, desta identidade, deve poder fazer parte todo o tesouro biológico (em seu sentido onto-positivo, isto é, não patológico ou teratológico) com que se nasceu ou com que se espera poder vir a ser complementado, quando não se possui uma constituição biológica padronizada como «normal» e se quer racionalmente poder passar a ter.
É aqui que a transplantologia e a transplantação se tornam pertinentes, como forma de auxílio ao bom cumprimento desta identidade propriamente humana, que passa pela boa realidade biológica, mas nela não se esgota (é por esta razão que faz sentido que se encare a transplantação como um direito, sempre que justificada, e não como um dever ou uma necessidade, salvo casos que tal manifestamente impliquem).
Respeitados os parâmetros acima expostos, não haverá sequer qualquer forma de questão bioética possível.
Assim, e no que à definição e respeito da identidade humana concerne, a transplantação não levanta qualquer problema bioético, a não ser quando se desrespeita a racionalidade que deve informar todos os processos possíveis.
Como princípio universal atinente à boa conduta em tais casos, deve ser aplicado aquele que dispõe que, em qualquer caso em que a identidade humana seja posta em causa, deve haver abstinência de procedimento de transplantação.
No limite, e retirado o exemplo do âmbito narrativo dos mitos modernos, a identidade humana pode ser afectada ao modo da produção monstruosa de uma realização frankensteineana, que pode ser vista como um conjunto disjunto e de impossível identidade própria de transplantes, mas sem sujeito transplantável.
No limite, é o ser humano que se arrisca a desaparecer como tal, se não for respeitada a sua identidade própria específica e individual-pessoal.

A transplantação como questão ética
Como é possível perceber, após a leitura dos pontos anteriores, a transplantação só suscitará questões éticas se não se respeitarem os preceitos relativos quer ao bem próprio do sujeito transplantável quer de eventuais terceiros, nomeada e especialmente os chamados «dadores», mais precisamente fornecedores de material a transplantar. Os preceitos relevam do necessário cuidado com o bem do sujeito transplantável e de outros sujeitos (todos os que estejam abrangidos).
Quanto ao sujeito transplantável, tendo em conta todos os preceitos gerais a ter em consideração em termos de intervenção em âmbito sanitário, o que importa fundamentalmente é a salvaguarda da sua identidade própria, sem o que se anula o que é propriamente humano num ser humano.
Quanto aos fornecedores de material biológico transplantável, estão em causa os mesmíssimos preceitos, sendo de relevar a necessidade de nunca se prejudicar tais sujeitos, sobretudo no que diz respeito quer ao absoluto da sua vida quer à sua mesma identidade própria.
No fundo, como, aliás, em todo o âmbito reflexivo e interventivo da bioética, cumpridos os preceitos relativos ao necessário bem-comum, que inclui sempre e necessariamente o bem próprio de todos os seres humanos interessados, não há ocasião para qualquer problema ético. Estes surgem porque não é tido em consideração exclusiva o bem-comum, mas, muitas vezes, outras formas de bens, que não respeitam o bem-comum, bem de todos.

Fevereiro de 2018
Américo Pereira



[1] Usamos o termo «fornecedor» e não o termo habitual «dador», porque este último está errado sempre que não se trata de um movimento voluntário, tópico e topicamente expresso por parte de quem, assim sim, «dá» o bem a transplantar. Mesmo uma expressão genérica vaga ou, pior, uma não expressão de oposição ao fornecimento do bem transplantável, não pode ser vista como uma «dádiva», sob pena de ruína completa do que é o sentido próprio dos termos, significando estes equivocamente “qualquer coisa”, mais ou menos a capricho, mais ou menos racionalmente, o que quer dizer imediatamente que não significam coisa alguma, pois não se lhes pode atribuir um significado próprio inequívoco e, sem este, não é possível haver qualquer forma de designação de, propriamente, realidade.