Pecado original

Pecado original

sábado, 8 de março de 2014


Apostolicam Actuositatem.
Decreto sobre o Apostolado dos Leigos
Os leigos na Igreja: identidade e missão

Juan Ambrosio
1.   Breve enquadramento histórico.

Antes do Concílio Vaticano II o problema da autonomia e do apostolado dos leigos era pensado no contexto de uma eclesiologia de tipo societário e hierárquico que tem da Igreja uma imagem de Instituição e sociedade «juridicamente perfeita», definida no seu interior por um poder hierárquico, orientada para a salvação dos fiéis, mediante os instrumentos da graça que ela possuía. Nesta imagem conceção de Igreja, o culto, a tutela do depósito doutrinal e a pregação do evangelho pertenciam, em primeiro lugar, ao clero, com o qual a Igreja acabava por se identificar, enquanto os leigos eram apenas chamados a usufruir dos meios da graça por ela repartidos para a salvação das suas almas, os leigos deveriam observar determinados deveres, não tendo propriamente missões, a não ser aquelas que lhes eram confiadas pela hierarquia.[1]
As palavras proferidas pelo Cardeal António Caggiano, um dos principais animadores da Ação Católica na Argentina, no primeiro Congresso Internacional do Apostolado dos Leigos (1951), são desta realidade um inequívoco testemunho:
"Há que deixar bem claro, sem dúvida alguma, tanto do ponto de vista jurídico, como do ponto de vista teológico, que a Igreja católica, por vontade do seu Divino Fundador, Cristo Jesus, é essencialmente uma Sociedade de pessoas desiguais, formadas por duas classes de membros, essencialmente diferentes entre si; a hierarquia e os simples fiéis; aqueles que santificam e aqueles que são santificados; aqueles que ensinam e aqueles que são ensinados; aqueles que governam e aqueles que são governados [...]."
E citando depois a Encíclica Vehementer nos, de Pio X, continuava:
"[...] só no corpo dos pastores residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros para o fim da sociedade [ou seja, da Igreja]; quanto á multidão, ela não tem outro dever que não seja o de se deixar conduzir e, como dócil rebanho, seguir os seus pastores."[2]

Todos conhecemos - porque em certa medida todos as vivemos , uns em primeira mão outros em segunda, mas nem por isso de uma maneira menos evidente - as evoluções e transformações porque a sociedade foi passando nos tempos anteriores ao Concílio.
Essas transformações, ainda que nem sempre aceites com evidência, acabaram por se ir impondo, levando a que a Igreja fosse ganhando consciência da necessidade de implementar novas estratégias de apostolado. Começa a não bastar a preocupação com a salvação das almas dos fiéis individuais e vai ganhando terreno a necessidade de salvar uma sociedade inteira que é necessário reconquistar para os ideais cristãos.
Neste contexto, o apostolado dos leigos começa a ser encarado a partir de um outro ponto de vista, precisamente por estarem mais diretamente presentes na vida social.
Este é claramente um dos filões que nos ajuda a entender a existência da Ação Católica. Através dos leigos da Ação católica, um pouco como braço continuador da hierarquia, o Reino de Deus pode ir sendo, de novo, implementado na sociedade.
Mas se é verdade que a Ação Católica possibilitou que a Igreja pudesse estar presente no mundo da escola (JEC - Juventude Estudantil católica), da Universidade (JUC - Juventude Universitária Católica) no mundo operário (JOC - Juventude Operária Católica, ACO - Ação católica Operária), no mundo do campo (JAC - Juventude Agrícola católica, ACR - Ação Católica Rural) e nos ditos meios independentes (JIC - Juventude Independente católica, ACI - Ação Católica Independente), também é igualmente verdade que esses ambientes específicos acabaram por trazer para dentro da Igreja toda a problemática e reflexão moderna dos seus meios. Igualmente este presença dos leigos cristãos nestes meios foi proporcionando a oportunidade de muitos destes assumirem aí os mais diversos compromissos, o que foi gerando interrogações e criando a consciência e a vontade de uma maior participação e compromisso na própria vida da Igreja[3].
O Movimento Litúrgico, o Movimento Bíblico, o Movimento Ecumênico vão ser cada vez mais impulsionados por uma Nova Reflexão Teológica que, por sua vez, acaba também por vir a ser dinamizada por estes movimentos. Daqui vai resultar uma maior consciencialização da identidade e vocação laicais que, paulatinamente,  vai levantando questões:
ü  Como é possível continuar a falar apenas de um dever de obediência?
ü  Como não reconhecer também aos leigos um papel ativo num apostolado que eles estão em condições privilegiadas de desempenhar?
ü  Como não admitir que assim também os fiéis leigos participavam na função apostólica da Igreja?[4]

É neste contexto de fundo, aqui tão rapidamente enunciado e apenas à maneira de esboço, que se coloca durante o séc. XX a questão da autonomia dos leigos e do seu apostolado.
Claro que a questão vai ser abordada a partir de vários pontos de vista. Para o magistério, embora querendo favorecer o apostolado dos leigos, acaba por olha para ele segundo as tradicionais linhas eclesiológicas de subordinação à hierarquia; para os leigos, sobretudo quando organizados em associações ou movimentos, embora sem questionarem a necessidade de uma clara fidelidade à Igreja e obediencial à hierarquia, acabam por olhar a partir de uma perspetiva que reivindica maiores espaços de autonomia ao nível da decisão e da organização[5].
As chamadas associações de apostolado indireto, ou seja, aquelas que atuavam na sociedade e nos ambientes de trabalho com fins assistenciais, sindicais e até políticos levantavam outro tipo de questões, pois acabavam por não ter um apoio claro e inequívoco por parte da hierarquia, muitas vezes preocupada com as implicações que dessa atividade poderia advir para a Igreja. A verdade é que essas associações nem sempre se moviam na estreita dependência das diretivas do clero, o que levantava claramente uma questão que acaba por se ir tornando de todo incontornável e que podia ser formulada desta maneira: até que ponto os leigos podem empreender atividades apostólicas por sua iniciativa própria?[6]

2.   O Concílio Vaticano II
Hoje conhecemos as grandes intuições que levaram o Papa João XXIII a convocar o Concílio Vaticano II e quais as grandes finalidades que definiu para o mesmo. Sabemos também que Paulo VI, quando chamado à cátedra de Pedro, assume como tarefa concluir esse grande empreendimento que ele próprio diz "dever ser contado sem dúvida, entre os maiores acontecimentos da Igreja."[7]
Mas não só assume concluir, como  assume também as mesmas finalidades enunciadas pelo seu antecessor, o explicitamente afirma no discurso proferido na abertura da 2ª sessão Conciliar, a 29 de setembro de 1963.
“… para que o sagrado depósito da doutrina cristã seja conservado e proposto com maior eficácia. Mas tu, indicando assim o objectivo mais alto do Concílio, associaste-lhe outro mais urgente e agora mais salutar, o objectivo pastoral, afirmando, «nem o nosso trabalho tem, como fim primário, discutirem-se alguns capítulos mais importantes da doutrina eclesiástica…, mas antes: investigá-la e expô-la do modo que pedem os nossos tempos.»”
“Se nós, veneráveis irmãos, colocarmos diante dos nossos olhos esta soberana ideia – de que Cristo é o nosso fundador, a nossa cabeça invisível mas real, e nós, todos, recebemos dele tudo, de modo que, assim, formamos com ele aquele «Christus totus», o Cristo total, de que fala Santo Agostinho e de que a teologia da Igreja está intimamente penetrada – podemos compreender melhor os fins principais deste Concílio, que, por motivo de brevidade e de melhor inteligência, indicaremos em quatro pontos: o conhecimento, ou, se se preferir, a consciência da Igreja; a sua reforma; a recondução de todos os cristãos à unidade; e o diálogo da Igreja com o mundo contemporâneo.”

Com o pano de fundo brevemente referenciado anteriormente  e tendo em conta as finalidades apontadas ao Concílio, que tinha como um dos seus grandes objetivos renovar a vida da Igreja, não é pois de estranhar que este dedicasse também a sua atenção explícita às questões relacionadas com o apostolado dos leigos.
Da consulta feita aos Episcopados, aos Dicastérios da Santa Sé, às Faculdades de Teologia e de Direito Canónico, aos diversos Institutos e Congregações religiosas, apareceram respostas que colocavam também questões relacionadas com os leigos, se bem que com um cariz muito ligado a dimensões canónicas e doutrinais, o que aliás foi uma nota geral das respostas. Nessa linha pedia-se que o Concílio precisasse e definisse as funções dos leigos, como se caracterizava o seu apostolado, quais eram os seus direitos e os seus deveres.
Foram numerosos os pedidos no sentido de favorecer o apostolado dos leigos, mas também surgiram muitas dúvidas sobretudo no que diz respeito à autonomia desse apostolado e à sua relação com a hierarquia.
No Pentecostes de 1960, pelo Motu Próprio Superno Dei, João XXIII dá ao Concílio o nome de Vaticano II e institui 10 comissões, entre as quais se encontra a Comissão do Apostolado dos Leigos[8]. Numa primeira forma de constituição das Comissões Preparatórias, os problemas do laicado eram analisados no âmbito da Comissão para a Disciplina do Clero e do Povo Cristão, mas João XXIII aceita o pedido de criação de uma comissão específica para tratar do apostolado dos leigos, da ação religiosa e da ação social católica.[9] Este dado é claramente importante, ainda que seja necessário afirmar que não figuravam um grande número de leigos nesta comissão.

2.1. A Lumen Gentium
O esquema preparatório De Ecclesia tinha um capítulo sobre os leigos que fora confiado à redação de Mons. G. Philips, belga, que recolheu nele grande parte da reflexão desenvolvida no âmbito da teologia do laicado. Nesse contexto surgia a tese da plena participação dos leigos na missão de toda a Igreja. Todos os membros do Povo de Deus devem contribuir com as suas forças para a edificação da Igreja. Essa missão, não cabe, pois, apenas aos bispos. Claro que não se trata de uma afirmação explícita da autonomia do apostolado dos leigos, mas reconhecia-se, sem dúvida alguma, o papel ativo que estes são chamados a ter. Também era significativo que este capítulo contivesse um parágrafo sobre o «sacerdócio universal» dos fiéis[10].
Sabemos que este primeiro esquema acabou por não ser aceite pelos padres conciliares, tendo Mons. Philips assumido o protagonismo da redação do novo esquema. A reflexão que entretanto foi sendo desenvolvida, suportada pelos debates na aula conciliar e pelo trabalho da  Comissão, acabou por dar um grande destaque ao princípio da «comunhão» e ao tema do «povo de Deus», o que acabou também por  permitir dar relevo à responsabilidade do apostolado dos leigos na Igreja[11].
O texto do cap. 4 sobre os leigos, vai retomar, em parte, o elaborado anteriormente por Mons. Philips, ainda que agora com uma reflexão mais teológica. As distinções iniciais sobre as várias formas de apostolado são, agora, menos relevantes, face à importância das afirmações que têm a ver com a igual dignidade de todos os membros do Povo de Deus e sobre a sua participação na única missão apostólica da Igreja. Na Igreja são diversas as funções e responsabilidades, mas todos têm igual dignidade. partindo, desta igual dignidade, o apostolado dos leigos participa da missão de toda a Igreja[12].
"O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja; são todos destinados pelo Senhor a este apostolado ao receberem o Batismo e a Confirmação." (LG 33)
Quanto á identidade do Leigo o texto afirma:
"Por leigos entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Baptismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja se no mundo.
É própria e peculiar dos leigos a característica secular." (LG 31)

Na totalidade da sua perspetiva eclesiológica o texto da LG, concentrando-se sobre a dimensão religiosa do fiel leigo, exalta a sua dignidade na  Igreja.
No entanto, o texto revela, igualmente, uma certa dificuldade em reconhecer verdadeiros espaços de autonomia e responsabilidade para os leigos, mesmo no interior da Igreja. Ao falar na relação com a hierarquia (cf LG 37) esta constatação fica clara. Define-se o direito dos leigos receberem "dos sagrados pastores os bens espirituais da Igreja" e afirma-se mesmo "a faculdade, ou por vezes também o dever, de dar a conhecer o seu parecer sobre assuntos relativos ao bem da Igreja", mas como é evidente isso não basta para estabelecer uma verdadeira autonomia  e capacidade de escolha e tomada de decisões. E ao referir-se explicitamente às atividades do apostolado o texto limita-se a recomendar num tom parenético que os leigos obedeçam aos pastores e que estes deem aos leigos "liberdade e margem, de ação, ou antes os animem, a empreender obras, inclusive por sua própria iniciativa."[13]

2.2. A Apostolicam Actuositatem
As maiores implicações sobre o tema do apostolado dos leigos acabaram por ter um desenvolvimento próprio no Decreto Sobre o Apostolado dos Leigos - Apostolicam Actuositatem.

2.2.1. O trabalho de elaboração do Decreto
A comissão Preparatória do Apostolado dos Leigos, desejada expressamente pelo Papa João XXIII, examinou as sugestões enviadas a Roma (31 proposições sobre o apostolado laical em geral, 127 sobre as Associações de fieis em geral e sobre Ação Católica em particular e 6 sobre as associações Internacionais) e estabeleceu os seguintes pontos para o seu trabalho[14]:
1. O apostolado dos Leigos: noção, fins, dependência da hierarquia, adaptação ás necessidades atuais,
2. A Ação Católica: noção, dependência da hierarquia, adaptação às necessidades atuais, relação com outras Associações;
3. As Associações: como torná-las mais eficientes, sua ação caritativa e social.
Como no trabalho preparatório os aspetos doutrinais dos problemas com que o Concílio era chamado a deparar-se eram pedidos à Comissão Teológica, a Comissão para o Apostolado dos Leigos encontrou dificuldades, pois era necessário abordar aqueles princípios teológicos que tinham vindo a ser desenvolvidos nos anos anteriores. Na verdade, certos problemas, a começar pelas noções fundamentais de leigo e apostolado, bem como as questões relativas ao relacionamento com a hierarquia, não poderiam ser ignorados.[15]
Depois de ano e meio de trabalho apareceu um esquema (De apostolatu laicorum)  dividido em quatro partes com 42 capítulos. Este esquema abordava os vários problemas relativos à experiência das Associações, dando destaque às relações de dependência mais ou menos estreita com o clero. A relação com a hierarquia era colocada de modo diferente para as organizações de «apostolado direto», onde havia uma enorme preocupação em definir em termos juridicamente precisos os vários graus de dependência: a missio canónica, em que eram confiadas aos leigos, de modo provisório, algumas funções.
Um discurso algo diferente era elaborado para o chamado «apostolado indireto» daquelas organizações empenhadas no âmbito social, cujo valor  e relativa autonomia eram reconhecidas.
O princípio do qual se partia para fundamentar esta diferença era o da distinção, sem separação, entre ordem natural e ordem sobrenatural. Porque a ordem natural se apresenta com leis próprias e responde aos seus próprios fins, os fiéis devem respeitar as suas características próprias para poderem agir de forma mais eficaz, gozando, desse modo, de uma relativa autonomia, que era reconhecida e mesmo afirmada, mas que era igualmente delimitada por um juízo moral que competia apenas à hierarquia.[16]
Foi reconhecida a necessidade de reduzir o texto. Em Junho de 1963 surge um novo esquema em 48 páginas que foi enviado aos Padres. A matéria era repartida em duas partes: sobre o apostolado dos leigos em geral e sobre o apostolado in specie.
Desta consulta, foram recebidas muitas sugestões que permitiram a reformulação do documento, do qual resulta um novo texto. O número de páginas é substancialmente reduzido (para 16), bem como o número de parágrafos (de 91 para 21) que se vão, agora, dividir por 5 pontos: a vocação apostólica do laicado,  os diversos ambientes em que esta vocação deve ser concretizada, os fins do apostolado laical, as formas associativas, a ordem a seguir. O texto é, de novo, enviado aos Padres em maio de 1964
Nos princípios de Outubro de 1964 o esquema é apresentado e discutido na aula conciliar, onde é criticado por não tirar as devidas consequências da doutrina acerca do Povo de Deus[17] e por não acentuar o suficientemente a responsabilidade e a espiritualidade laical. São produzidas 144 intervenções escritas e orais. Pela primeira vez um leigo - Patrick Keegan, Presidente do Movimento Mundial dos Trabalhadores Cristãos - intervém na aula conciliar. O esquema é de novo retocado e é enviado aos Padres em junho de 1965. A estrutura mantem-se, mas os parágrafos são agora 33.
No princípio da quarta sessão conciliar procede-se à votação por partes e por capítulos; as emendas ou modos propostos foram cerca de 700. Finalmente, a votação geral tem o seguinte resultado 2201 placet; 2 non placet; 5 nulos. No dia 18 de novembro, na 8º sessão pública, procede-se a uma última votação pública. Dos 2342 votantes, 2340 votaram placet e 2 votaram non placet. O santo Padre Paulo VI promulgou solenemente o decreto.[18]
No Decreto final reconhece-se claramente a intenção de valorizar o apostolado dos leigos nas suas múltiplas expressões, ainda que esteja também bem presente a preocupação por salientar a orientação e mesmo um certo controle por parte da hierarquia.

2.2.2. Linhas de Força do Decreto
Ø  Proémio
O apostolado decorre da própria vocação cristã e nunca poderá faltar à Igreja. "Com efeito, o apostolado dos leigos, que deriva da própria vocação cristã, jamais poderá faltar na Igreja." (AA Proémio)

Ø  Cap 1 - Vocação dos Leigos ao apostolado
A perspetiva eclesiológica presente no Decreto é, naturalmente, a da LG, e o apostolado dos leigos é apresentado como sendo fundado na única missão da Igreja, da qual participam plenamente os fiéis em virtude do batismo e da vocação que deste deriva.
" A Igreja nasceu para tornar todos os homens participantes da redenção salvadora e, por eles, ordenar efetivamente a Cristo o universo inteiro, dilatando pelo mundo o seu reino para glória de Deus Pai. Toda a atividade do Corpo místico que a este fim se oriente, chama-se apostolado. A Igreja exerce-o de diversas maneiras, por meio de todos os seus membros, já que a vocação cristã é também, por sua própria natureza, vocação ao apostolado." (AA 2)

E o texto continua afirmando que a missão dos leigos é exercida no meio do mundo e das ocupações terrenas, residindo aí a sua especificidade na concretização da única missão da Igreja:
"Existe na Igreja diversidade de funções, mas unidade de missão. Aos Apóstolos e seus sucessores, confiou Cristo a missão de ensinar, santificar e governar em seu nome e com o seu poder. Mas os leigos, dado que são participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm um papel próprio a desempenhar na missão do inteiro Povo de Deus, na Igreja e no mundo. Exercem, com efeito, apostolado com a sua ação para evangelizar e santificar os homens e para impregnar e aperfeiçoar a ordem temporal com o espírito do Evangelho; deste modo, a sua atividade nesta ordem dá claro testemunho de Cristo e contribui para a salvação dos homens. E sendo próprio do estado dos leigos viver no meio do mundo e das ocupações seculares, eles são chamados por Deus para, cheios de fervor cristão, exercerem como fermento o seu apostolado no meio do mundo." (AA 2)

Ao referir-se ao fundamento do apostolado dos leigos o texto do Decreto diz com toda a clareza que é o próprio Senhor que mandata cada um para o apostolado, pelo que não é necessário nenhum mandato especial da hierarquia para que o cristão leigo participe na função sacerdotal, profética e real de Cristo e exerça o seu apostolado. deste modo a relação entre leigos e hierarquia não deve ser de submissão, mas de diálogo e corresponsabilidade.
"O dever e o direito ao apostolado advêm aos leigos da sua mesma união com Cristo cabeça. Com efeito, inseridos pelo Baptismo no Corpo místico de Cristo, e robustecidos pela Confirmação com a força do Espírito Santo, é pelo Senhor mesmo que são destinados ao apostolado. São consagrados em ordem a um sacerdócio real e um povo santo (cfr. 1 Ped. 2, 4-10) para que todas as suas actividades sejam oblações espirituais e por toda a terra dêem testemunho de Cristo." (AA 3)

Todos os cristãos têm o dever e o direito do apostolado, o que implica ultrapassar uma visão exclusivamente jurídica e administrativa da Igreja, assumindo a comunhão eclesial como paradigma. Todos são sujeitos ativos e responsáveis e a sua vida não está regulada apenas pela legitima autoridade da hierarquia, mas também pelo Espírito Santo.
" O Espírito Santo - que opera a santificação do Povo de Deus por meio do ministério e dos sacramentos - concede também aos fiéis, para exercerem este apostolado, dons particulares (cfr. 1 Cor. 12, 7), «distribuindo-os por cada um conforme lhe apraz» (1 Cor. 12, 11), a fim de que «cada um ponha ao serviço dos outros a graça que recebeu» e todos actuem, «como bons administradores da multiforme graça de Deus» (1 Ped. 4, 10), para a edificação, no amor, do corpo todo (cfr. Ef. 4, 1). A recepção destes carismas, mesmo dos mais simples, confere a cada um dos fiéis o direito e o dever de os actuar na Igreja e no mundo, para bem dos homens e edificação da Igreja, na liberdade do Espírito Santo, que «sopra onde quer» (Jo. 3, 8) e, simultâneamente, em comunhão com os outros irmãos em Cristo, sobretudo com os próprios pastores; a estes compete julgar da sua autenticidade e exercício ordenado, não de modo a apagarem o Espírito, mas para que tudo apreciem e retenham o que é bom (cfr. 1 Tess. 5, 12.19.21)(4)." (AA 3)

A fecundidade do apostolado dos leigos depende da sua união a Cristo, raiz e fundamento da sua espiritualidade.
" A fonte e origem de todo o apostolado da Igreja é Cristo, enviado pelo Pai. Sendo assim, é evidente que a fecundidade do apostolado dos leigos depende da sua união vital com Cristo, segundo as palavras do Senhor: aquele que permanece em mim e em quem eu permaneço, esse produz muito fruto; pois, sem mim, nada podeis fazer» (Jo. 15, 5)" (AA 4)

 Eles são também chamados à santidade, ainda que no meio do mundo e segundo o estado de cada um.
" Esta espiritualidade dos leigos deverá assumir características especiais, conforme o estado de matrimónio e familiar, de celibato ou viuvez, situação de enfermidade, actividade profissional e social. Não deixem, por isso, de cultivar assiduamente as qualidades e dotes condizentes a essas situações, e utilizar os dons por cada um recebidos do Espírito Santo." (AA 4)

Ø  Cap. II - Os fins do apostolado dos leigos
O Decreto fala repetidamente do apostolado não só como evangelização e santificação dos seres humanos, mas também como animação e aperfeiçoamento da realidade social, destacando a esse nível a importância do apostolado dos leigos.
 "A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e actuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais. Por este motivo, os leigos, realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na temporal. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo na terra, plenamente no último dia. O leigo, que é simultaneamente fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã." (AA 5).

Na linha da ordem temporal o Decreto destaca a importância da ação social dos cristãos.
"Quanto aos leigos, devem eles assumir como encargo próprio seu essa edificação da ordem temporal e agir nela de modo direto e definido, guiados pela luz do Evangelho e a mente da Igreja e movidos pela caridade cristã; enquanto cidadãos, cooperar com os demais com a sua competência específica e a própria responsabilidade; buscando sempre e em todas as coisas a justiça do reino de Deus. A ordem temporal deve ser construída de tal modo que, respeitadas integralmente as suas leis próprias, se torne, para além disso, conforme aos princípios da vida cristã, de modo adaptado às diferentes condições de lugares, tempos e povos. Entre as atividades deste apostolado sobressai a ação social dos cristãos, a qual o sagrado Concílio deseja que hoje se estenda a todos os domínios temporais, sem excluir o da cultura." (AA 7)

Ø  Cap III - Os vários campos do apostolado
Ao exercerem o seu apostolado na Igreja e no mundo são vários os campos que se abrem para o exercício e concretização da sua missão.
Nas comunidades eclesiais afirma-se que a sua ação é tão necessária que, "sem ela, o próprio apostolado da hierarquia não pode alcançar plenamente o seu objetivo." (AA 10)
A sua ação pode ir desde a administração de bens, à comunicação da palavra (catequese, anúncio, vida litúrgica) passando por tentar conduzir à Igreja os que dela se encontrem afastados (cf. AA 10), podendo e devendo ser exercida quer ao nível paroquial, como ao nível diocesano e interdiocesano, num âmbito nacional, ou mesmo internacional (cf. AA 10)
No âmbito do mundo o seu apostolado pode e deve ser exercido ao nível da família (cf. AA 11), da juventude (cf. AA 12), do meio social, onde se afirma que é o esforço para modificar, pelo espírito cristão, a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da comunidade, e que não pode ser devidamente realizado por mais ninguém (cf. AA 13), da ordem nacional e internacional (cf. AA 14).

Ø  Cap. IV As várias formas do apostolado
Ao falar sobre as várias formas de apostolado o decreto vai afirmar explicitamente no seu nº 16:
"O apostolado individual que deriva com abundância da fonte de uma vida verdadeiramente cristã (cfr. Jo. 4,14), é origem e condição de todo o apostolado dos leigos, mesmo do associado, nem nada o pode substituir.
A este apostolado, sempre e em toda aparte proveitoso e em certas circunstâncias o único conveniente e possível, são chamados e, por isso, obrigados, todos os leigos, de qualquer condição; ainda que não se lhes proporcione ocasião ou possibilidade de cooperar nas associações."

Sublinha, depois, um pouco mais à frente:
" A forma peculiar do apostolado individual, e sinal muito acomodado também aos nossos tempos, porque manifesta Cristo vivo nos seus fiéis, é o testemunho de toda a vida laical que flui da fé, esperança e caridade. Porém, pelo apostolado da palavra, em certas circunstâncias absolutamente necessário, os leigos anunciam a Cristo, expõem a sua doutrina, difundem-na segundo a sua própria condição e capacidade, e professam-na com fidelidade."

Apesar desta afirmação o decreto afirma igualmente que:
" [...] o apostolado em associação responde com fidelidade à exigência humana e cristã dos fiéis e é, ao mesmo tempo, sinal da comunhão e da unidade da Igreja em Cristo que disse: «Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles (Mt. 18,20)." (AA 18)

Sem, no entanto, nunca perder de vista que:
" As associações não têm em si o seu fim, mas devem servir à missão que a Igreja tem de cumprir para com o mundo. A sua força apostólica depende da conformidade com os fins da Igreja e do testemunho cristão e espírito evangélico de cada um dos membros e de toda a associação." (AA 19)

O Decreto faz uma referência especial à Ação Católica (cf. AA 20)

Ø  Cap. V A ordem a guardar no apostolado
Ao falar na relação do apostolado dos leigos com a hierarquia diz-se explicitamente que:
"Compete à Hierarquia fomentar o apostolado dos leigos, fornecer os princípios e os auxílios espirituais, ordenar para bem comum da Igreja o exercício do mesmo apostolado, e vigiar para que se conservem a doutrina e a ordem." (AA 23)

De facto, para que as diversas iniciativas dos leigos possam ter o nome de católicas elas têm de ter a aprovação explícita da legítima autoridade eclesiástica.
"Assim, existem na Igreja muitas iniciativas apostólicas nascidas da livre escolha dos leigos e dirigidas com o seu prudente critério. Em determinadas circunstâncias, a missão da Igreja pode realizar-se melhor por meio de tais iniciativas, e daí o serem com frequência louvadas e recomendadas pela Hierarquia. No entanto, nenhuma iniciativa apostólica se pode chamar católica se não tiver a aprovação da legítima autoridade eclesiástica." (AA 24)

No Nº 26 do Decreto sugere-se, na medida do possível, a criação ao nível das dioceses e das paróquias, de Conselhos que ajudem a ação apostólica da Igreja, quer no campo da evangelização e santificação, quer no campo caritativo e social. Nesta linha decreta-se mesmo que se constitua na Santa Sé um Secretariado especial para servir e estimular o apostolado dos leigos.

Ø  Cap. VI - A formação para o apostolado.
Tendo o apostolado dos leigos o seu campo de ação tanto na Igreja como no mundo, é natural que a formação tenha de ter em conta essa dupla pertença.
Destaca-se, deste modo, a importância da formação espiritual e doutrinal (teológica, ética e filosófica), mas também da formação ao nível do conhecimento da sociedade e da cultura.
Sublinha-se que esta formação não pode ficar ao nível de um ensino meramente teórico, pelo que os leigos,
"devem ir aprendendo gradual e prudentemente, desde o começo da formação, a ver, julgar e agir todas as coisas à luz da fé, a formar-se e aperfeiçoar-se com os outros por meio da acção e a entrar assim ao serviço activo da Igreja." (AA 29)

Este tipo de formação, deve começar logo desde criança e deve continuar ao longo da vida, dando uma especial atenção aos adolescentes e jovens (cf. AA 30).
Pais, padres, professores e educadores, grupos e associações laicais, devem assumir a sua missão de formadores (cf. AA 30), adaptando a formação às diversas formas de apostolado (cf. AA 31), recorrendo para isso a diversos meios de formação, tais como reuniões, congressos, retiros, conferências, livros e criando também centros e institutos superiores onde os leigos possam estudar não só a teologia, mas também a antropologia, a psicologia, a sociologia e a metodologia (cf. AA 31).

O Decreto termina com uma exortação a que os leigos respondam "com decisão de vontade, ânimo generoso e disponibilidade de coração à voz de Cristo", afirmando que é o próprio Senhor que através do Concílio,
"mais uma vez convida todos os leigos a que se unam a Ele cada vez mais intimamente, e sentindo como próprio o que é d'Ele (cfr. Fil. 2,5), se associem à Sua missão salvadora. É Ele quem de novo os envia a todas as cidades e lugares aonde deve chegar (cfr. Lc. 10,1); para que, nas diversas formas e modalidades do apostolado único da Igreja, se tornem verdadeiros cooperadores de Cristo, trabalhando sempre na obra do Senhor com plena consciência de que o seu trabalho não é vão no Senhor (cfr. 1 Cor. 15,28)." (AA 33).

2.3. A Gaudium et Spes
Como sabemos a elaboração do esquema sobre a Igreja no mundo moderno amadureceu lentamente no Concílio e foi bastante laborioso, encerrando bastante tensões. A sua redação acabou por ser iniciada por uma comissão mista, composta pela Comissão Doutrinal e pela Comissão do Apostolado dos Leigos[19]
Tendo por base a premissa do diálogo entre a Igreja e o mundo e a reflexão acerca da história da salvação e dos sinais dos tempos, o apostolado dos leigos acaba por ser pensado já não como uma reconquista da sociedade para Cristo, mas como disponibilidade para o diálogo com um mundo que não era completamente estranho a Cristo e, mais ainda, como participação numa sociedade mais justa em comunhão com todo o ser humano.[20]
No seu nº 43 a GS sublinha a importância do empenhamento dos cristãos nas coisas temporais, censurando mesmo uma certa tendência para considerar como vertentes opostas o envolvimento no mundo e na Igreja. Também neste nº se faz alusão à autonomia dos leigos, inscrevendo-a no juízo da sua consciência.
Ainda no nº 43, ao falar na responsabilidade que os leigos devem assumir em primeira pessoa pela sua atuação, a GS, se bem que aluda claramente à atenção cuidada que deve ser dada Á doutrina do magistério, como que esboça, ainda que numa breve alusão, o papel do clero no apostolado dos leigos, atribuindo-lhe um ministério sobretudo espiritual, ao deixar para os leigos a verdadeira responsabilidade das suas escolhas.[21]

3. O percurso pós-conciliar. Breve olhar.

3.1. O Pontifício Conselho dos Leigos[22].

Pela carta Apostólica «Finis Concílio», de 3 de janeiro de 1966 são criadas as chamadas Comissões Pós-Conciliares entre as quais se encontra a do «Apostolado dos Leigos» (as restantes são: «Dos Bispos e Governo das Dioceses», «Dos Religiosos», «Das Missões», «Da Educação Cristã»). A estas Comissões sob a chefia e orientação de uma «Comissão Central» foi confiada a preparação dos necessários regulamentos para a execução das orientações do Concílio.
Pelo Motu Próprio «Catholicam Christi Ecclesiam», de 6 de janeiro de 1967 o Papa Paulo VI, dando seguimento às orientações do nº 26 do Decreto Apostolicam Actuositatem cria o «Conselho dos Leigos» e dando seguimento às orientações do nº 90 da Constituição Gaudium eT Spes, cria a «Comissão Pontifícia de estudos Justitia et Pax». Dois organismos distintos, mas com um Presidente (cardeal) e Vice-presidente (bispo) comum e dois secretários. Os dois são constituídos a título de experiência por um período de 5 anos.
O «Conselho dos Leigos» tinha como finalidade: Promover o apostolado dos leigos, organizando-o, coordenando-o e inserindo-o no apostolado geral da Igreja; Assistir a hierarquia e os leigos nas suas atividades apostólicas; Promover estudos que contribuam para o aprofundamento doutrinal das questões que dizem respeito aos leigos; organizar um centro de documentação e recolher e difundir informação, em ordem à boa formação dos leigos.
 Aproximadamente 10 anos depois, a 10 de dezembro de 1976, com o Motu Próprio «Apostolatus Peragendi», Paulo VI reforma o Conselho dos Leigos, incorporando-o entre os Dicastérios permanentes da Santa Sé, com o nome de «Pontifício Conselho para os Leigos». Nesta ocasião refere-se a ele como sendo um dos melhores frutos do Concílio.
O Papa João Paulo II, que durante anos foi um dos seus consultores enquanto bispo de Cracóvia, volta a confirmá-lo no exercício da sua missão na Constituição Apostólica «Pastor Bonus» de 28 de Junho de 1988.
Hoje o Pontifício Conselho para os Leigos tem um Presidente, que é assistido por um comité de presidência composto por alguns Cardeais. O presidente é coadjuvado por um Secretário e um Subsecretário. Os seus membros e consultores tentam ser expressão e representação da universalidade do laicado. No âmbito do secretariado existem 4 secções  que se ocupam respetivamente: Das associações de fiéis, movimentos eclesiais e novas comunidades; da mulher na Igreja e na sociedade; da pastoral juvenil; e da pastoral do desporto.
Este Dicastério foi chamado a colaborar de uma maneira muito ativa na VII Assembleia geral Ordinária do Sínodo dos Bispos «Sobre a vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo» (1987).
A Exortação Apostólica «Christifideles Laici» de 1988, constitui para este Pontifício Conselho a sua Magna Carta.
Antes porém de lançarmos um olhar, ainda que breve, sobre essa exortação, seja-me permitida, ainda, uma mais breve alusão ao Congresso Nacional dos Leigos.

3.2. Congresso Nacional dos Leigos
      (Fátima, 2-5 de junho de 1988)
Na apresentação do Volume que recolhe as principais intervenções no Congresso[23], assinada por D. João Alves, destacam-se as três ideias que presidiram à sua realização.
Renovação Conciliar. Em todo o Congresso perpassou a inspiração do Concílio Vaticano II, considerado ponto de referência indispensável para o momento em que se vivia. A este propósito diz-se explicitamente:
"O Congresso alegrou-se com os esforços levados a cabo para que o espírito e as orientações conciliares se concretizassem entre nós, mas manifestou também a sua pena por ainda não se ter ido mais longe."

Formação Cristã. A necessidade e urgência em promover, por todos os meios, a formação dos cristãos e em especial dos leigos, é apresentada como uma das maiores prioridades do trabalho pastoral.
Participação e corresponsabilidade. A participação corresponsável dos leigos na vida da Igreja é outra ideia que perpassou todo o Congresso e que aparece claramente nos textos. Diz-se que nem podia ser de outra maneira, pois crescendo a consciência do que se é e da missão que se recebeu como cristão, surge, forçosamente, a necessidade de se participar na vida e na ação da comunidade a que se pertence.
Nesta apresentação é também dedicada uma brevíssima palavra ao Pós -Congresso, dizendo-se que este foi ponto de chega e que teria de ser ponto de partida.
Nessa altura (1990) D. João Alves afirma que, de facto, assim aconteceu.

3.3. A Exortação Apostólica Christifideles Laici
Segundo o Pontifício Conselho para o Apostolado dos Leigos esta Exortação Apostólica  Pós-Sinodal «Christifidelis Laici», sobre a vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo, de 30 de Dezembro de 1988, continua hoje a constituir o quadro principal de referência no que diz respeito à vocação dos fiéis leigos e à sua comunhão e participação na vida e missão da Igreja, ao serviço do ser humano e da sociedade.[24]

O documento conjuga simultaneamente três grandes objetivos. Primeiro faz uma recapitulação orgânica das reflexões do Concílio Vaticano II sobre o Laicado, à luz do magistério e da prática da Igreja. Oferece, depois, num segundo momento, critérios que ajudem a fazer o delicado e necessário discernimento das experiencias entretanto surgidas (ministérios não ordenados, movimentos eclesiais, participação da mulher na vida da sociedade e da Igreja). Finalmente, num terceiro momento, essencialmente correspondente ao último Cap., propõe orientações para que os leigos possam suscitar e alimentar a sua consciência do dom e da responsabilidade que têm na comunhão e missão da Igreja[25].

A Exortação Apostólica tem como pano de fundo a imagem dos trabalhadores da vinha de que nos fala o Evangelho de Mateus 20.

No seu nº 1 começa taxativamente por afirmar que a vinha é o mundo inteiro, que deve ser transformado segundo o plano de Deus em ordem à concretização do Reino. Nesta vinha não lícito a ninguém ficar inativo, pois ela é o campo no qual os fiéis leigos são chamados a viver a sua missão, sendo sal da terra e luz do mundo (cf. ChL 3).

Para, depois, no nº 2 lançar o convite: "Ide vós também para a minha vinha". Chamamento que se dirige a todos os membros da Igreja.

No anúncio e testemunho de Jesus Cristo, os fiéis leigos têm um lugar original e insubstituível, sendo por meio deles que a Igreja de Cristo se pode tornar presente nos mais diversos sectores do mundo, como sinal e fonte de esperança e de amor (cf. ChL 7)


No nº 2, a Exortação fala nas duas tentações das quais muitas vezes a Igreja, no percurso pós-conciliar, não se conseguiu desviar : a tentação de mostrar um exclusivo interesse pelos serviços e tarefas eclesiais, provocando, com frequência um abdicar das responsabilidades especificas no mundo profissional, social, económico, cultural e político; e a tentação de legitimar a indevida separação entre fé e vida, entre aceitação do Evangelho e a ação concreta nas mais variadas realidades temporais e terrenas.

Ao refletir sobre a dignidade e identidade dos fiéis leigos, a Exortação Apostólica, afirma que é no interior do mistério da Igreja como mistério de comunhão que se revela a identidade dos fiéis leigos e a sua original dignidade. Só no interior dessa dignidade é que podem ser definidas a sua vocação e a sua missão na Igreja e no mundo (cf. ChL 8).

Ao querer responder à pergunta «quem são os fiéis leigos?», a Exortação Apostólica retoma, citando, a definição do Cap. 4 da Lumem Gentium e interpreta-a á luz da imagem da vinha: "os fiéis leigos, como todos os outros membros da Igreja, são vides radicadas em Cristo, a verdadeira videira, que torna as vides vivas e vivificantes." (ChL 9). Deste modo tenta claramente uma definição positiva, ou seja, afirma aquilo que os leigos são, mas depois, citando explicitamente o n.31 da LG volta a dizer que «por leigos entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem, ou do estado religioso reconhecido pela Igreja [...].»

Também na linha do Concílio Vaticano II, A exortação afirma que com a efusão batismal e crismal, o batizado torna-se participante na mesma missão de Jesus Cristo, participando no seu tríplice múnus sacerdotal (oferecendo-se a si mesmo e a todas as suas atividades na oferta de Jesus), profético (anunciando profeticamente e concretizando a novidade e a força do Evangelho na sua vida quotidiana) e real (estando ao serviço e difusão do reino) (Cf. ChL 13-14)

É em virtude da sua comum dignidade batismal, que o fiel leigo é corresponsável, juntamente com os ministros ordenados e com os religiosos e as religiosas, da missão da Igreja (cf. ChL 15). Mas essa comum dignidade, que também se manifesta no comum chamamento à santidade (cf. CL 16), no caso do fiel leigo, assume uma modalidade que o distingue, sem todavia o separar, do presbítero e dos religiosos. Retomando explicitamente o Concílio Vaticano II, a Exortação Apostólica, aponta a índole secular como sendo essa modalidade.

E para ajudar a entender de forma completa adequada e precisa essa índole secular da condição eclesial do fiel leigo, afirma-se.

"Dessa forma, o estar e agir no mundo  são para os fiéis leigos uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial, pois é na sua situação intra-mundana que deus Manifesta o seu plano e comunica a especial vocação de «procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus»." (ChL 15)


Esta inserção no mundo deve, no entanto ser vivida, participando igualmente na vida da Igreja-comunhão[26], que também não pode ser interpretada como uma realidade simplesmente sociológica e psicológica, mas deve acolhida e vivida como um grande dom do Espírito Santo (cf. ChL 18-20). É a luz desta realidade e experiência de comunhão que devem ser pensados os diversos carismas e ministérios (Cf. ChL 21) e as diversas formas de parcticipação na vida da Igreja (cf. ChL 28-31).

A exortação Apostólica ChL  no seu Capítulo III «Constituí-vos para irdes e dardes fruto«» faz referência à questão da corresponsabilidade dos Leigos, como se pode depreender pelo próprio subtítulo «A corresponsabilidade dos fiéis leigos na Igreja-Missão». Contudo, a questão da corresponsabilidade não é verdadeiramente assumida enquanto tal. Dela se diz, na sequência do Concílio,

"Ora, no contexto da missão da Igreja o Senhor confia aos fiéis leigos, em comunhão com todos os outros membros do Povo de Deus, uma grande parte de responsabilidade. Tinham disso plena consciência os Padres do Concílio Vaticano II: « Os sagrados Pastores conhecem, com efeito, perfeitamente quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Pois eles próprios sabem que não foram instituídos por Jesus Cristo para se encarregarem por si sós de toda a missão salvadora da Igreja para com o mundo, mas que o seu cargo sublime consiste em pastorear de tal modo os fiéis e de tal modo reconhecer os seus serviços e carismas, que todos, cada um segundo o seu modo próprio, cooperem na obra comum ». Essa consciência reapareceu, depois, com renovada clareza e com maior vigor, em todos os trabalhos do Sínodo." (ChL 32)


Estranhamente nem sequer a expressão corresponsabilidade aqui aparece. A reflexão, ao longo do Cap. vai depois ser desenvolvia no contexto da evangelização (fala-se na hora de uma nova evangelização cf. nº 34) e das suas características, finalidades e âmbitos. Por isso o leigo deve ir por todo o mundo (nº 35), vivendo o Evangelho, servindo a pessoa e a sociedade (nº 36-, promovendo a dignidade da pessoa humana (nº 37), defendendo o inviolável direito à vida (nº 38), invocando livremente o nome do Senhor (nº39), dando especial destaque à família como lugar de humanização da pessoa e da sociedade na família (nº 40), promovendo a caridade como alma da solidariedade (nº 41), intervindo no mundo da política (nº 42) e da vida económica e social (nº 43), evangelizando as culturas (nº 44)

No quarto Cap. - «Os trabalhadores da vinha do Senhor» - a Exortação Apostólica refere a variedade de vocações e situações em que se pode concretizar a condição laical: jovens, crianças e idosos (nº46-48), homens e mulheres ( nº 49-52), doentes e atribulados (nº 53), nos diversos estados de vida e vocações (nº 55), nas várias vocações laicais (nº56), Todos apesar da diversidade são trabalhadores da vinha do Senhor.

A Exortação Apostólica dedica o seu último Cap. - «Para que deis mais fruto» -  à formação dos fiéis leigos, como já foi anteriormente referido.


4. Um olhar global para o período pós-conciliar.       
    Desafios e interpelações

Os anos que se seguiram ao Concílio foram um período de entusiasmo, a que se juntou também alguma desorientação, primeiro, e, depois, mais tarde, algum desânimo que tem vindo, de certa forma, a aumentar até aos nossos dias.
As reflexões desenvolvidas pelo Concílio foram sendo recebidas como uma valorização da vida cristã dos leigos, reconhecendo o contributo que podiam e queriam dar para a vida das comunidades, em particular e da Igreja, em geral.
Uma primeira consequência  foi certamente o aumento da responsabilidade dos leigos no âmbito essencialmente paroquial, mas também diocesano, onde surgiram de uma maneira muito mais visível, intensa e ativa no âmbito da catequese e da animação de vários setores da vida pastoral.
ü  Isto foi dando origem áquilo que Paola Bignardi a figura do «leigo pastoral», ou seja alguém fortemente envolvido no desempenho das inúmeras funções de uma ação eclesial cada vez mais estruturada. Um leigo que vai interpretar a sua vocação sobretudo em referência à experiência da comunidade cristã, com uma competência que vai aumentando, até correr o risco, em não poucos casos, de se tornar como que excessiva quando começa a perder uma referência concreta com a inserção no mundo.[27]
Em certo sentido, segundo a mesma autora, foi apreendida de um modo mais vivo a perspetiva da LG do que propriamente a da GS.

ü  A secularização crescente, uma deficiente inculturação da fé, bem como o fim de uma época em que a cultura se apresentava de uma maneira unificada, foram gerando mudanças significativas que muitas vezes as comunidades  crentes não souberam interpretar.
De facto, a pluralidade passa a ser um das notas caraterísticas das sociedades provocando num determinado mundo católico uma fase de crise e mesmo de um certo declínio que pode ser observada nas seguintes notas[28]:
Crescente crise da unidade pastoral realizada essencialmente em torno da paróquia. O que é hoje a paróquia? Como pode ser pensada ou repensada?. A especialização das orientações da pastoral - para jovens, para a família, para... também acarretam riscos de uma pastoral em compartimentos estanques.
Crise da unidade da militância laical em torno da Ação católica. Hoje surgem muitas propostas de associações e movimentos, mas existe uma clara atomização e fragmentação.
Crise da unidade política dos católicos, que foi realizada, no pós guerra, em torno de um ideal de democracia cristã[29]. Hoje assistimos a uma enorme pluralidade neste campo. Pluralidade que o próprio Concílio considerou legítima. O ensinamento Conciliar ajudo a entender que a partir do Evangelho não se podem deduzir imediatamente todas as opções concretas a tomar no âmbito social, político e secular, devendo estas brotar de um discernimento, muitas vezes difícil e incerto, que deve ser realizado pela consciência cristã e pela liberdade de cada um.

ü  Tudo isto provoca que os modelos tradicionais de fazer formação entrem também em crise e, pouco a pouco, os leigos começam a perceber que muitas das propostas formativas não correspondem verdadeiramente às exigências do momento. Na verdade, muitas vezes a formação ficava reduzida à transmissão de conteúdos doutrinais, muito importantes e mesmo necessários, mas insuficientes, sobretudo quando se perderam as tais unidades atrás referidas[30].
Os fiéis leigos têm hoje necessidade de conteúdos de formação em que a transmissão dos conteúdos da fé possa ser cruzada com os diversos aspetos da sua vida, de modo a que possa iluminá-los. A fé tem de ser antropologicamente, existencialmente e quotidianamente significativa.

ü  A situação do associativismo laical tradicional, sofreu, como já foi referido, uma enorme evolução no período pós-conciliar. O associativismo tradicional entra em crise e surge a afirmação de novas subjetividades[31]. Os novos movimentos laicais, já comparados em 1998, pelo então Cardeal Ratzinger, como uma irrupção do Espírito, por vezes, acabam por provocar uma crise nas estruturas eclesiais pelo modo como, frequentemente,  entram em relação com a comunidades cristãs.
Também a reflexão e a ação pastoral nem sempre ajudou, quando muitas vezes foi reduzida a questões relacionadas com a estrutura e a organização, tendo muita dificuldade em valorizar a subjetividade, de tornar eficazes os organismos de participação e de praticar um estilo de diálogo e de corresponsabilidade.
Isto fez com que existisse uma tendência em diversas Associações em virar-se para si mesmas, preocupando-se, quase que exclusivamente com as suas iniciativas e atividades, sem grande intercâmbio com outras Associações, o que foi gerando  uma imagem do laicado cada vez mais fragmentada. Com frequência, a relação dos leigos pertencentes a movimentos e associações com a Igreja é mediada exclusivamente pelo movimento a que pertencem, pela sua cultura, pelas suas orientações e pela liderança nele existente. Percebendo esta realidade, já a Christifidelis Laici, no seu nº 30, tinha avançado com alguns critérios de eclesialidade; primado dado à vocação de cada cristão à santidade, a responsabilidade em professar a mesma fé da Igreja, o testemunho da comunhão com o magistério, a conformidade e a participação na finalidade apostólica da Igreja, o empenho de uma presença na sociedade humana.

ü  Hoje a questão do laicado pode verdadeiramente ser considerada uma questão da Igreja. Na verdade, ao longo deste tempo que medeia entre o Concílio e os nosso presente, vai-se instalando uma certa situação de crise que toca também a vivência laical e que é, certamente, fruto de uma cultura e de uma práxis eclesial que não tem conseguido repensar-se levando até às últimas consequências as perspetivas presentes sobretudo na LG e na GS[32].
À medida  em que a relação e o diálogo da Igreja com o mundo não é verdadeiramente assumido, ou se vai tornando mais débil, vai tornando-se também mais supérflua a ação de ponte caraterística da condição laical, o que provoca que a dimensão secular dos leigos, acabe por ser não só pouco entendida, como, essencialmente, pouco valorizada.
Deste modo, por exemplo, a presença dos leigos na família, na escola, nas profissões, na política, na cultura, parece ser mais uma coisa que só tem a ver com a coerência do testemunho pessoal e não com um modo específico de contribuir para a missão da Igreja.
A compreensão da vocação e do apostolado laicais a este nível tem-se fragilizado não só na consciência das comunidades. como também na consciência dos próprios leigos, o que tem proporcionado, pouco a pouco, a emergência de um laicado anémico, clerical, debruçado quase que exclusivamente sobre as coisas da Igreja.
Aqueles leigos que continuam a fazer do mundo o seu lugar privilegiado de participação corresponsável na vida da Igreja, acabam por ir sentindo uma quase irrelevância no seu agir apostólico, correndo o risco de ficar quase invisíveis e de ser considerados presenças pouco importantes e determinantes na vida da comunidade eclesial.

ü  A pastoral tem dedicado grande parte das suas energias a uma ação de reorganização que, se por um lado, a tem tornado mais rica e especializada, por outro, nem sempre tem promovido convenientemente o pensamento nem a corresponsabilidade. Em muitas das iniciativas pastorais a presença dos leigos é reduzida a dimensões quase que exclusivamente executivas. os leigos fazem muita coisa, mas nem sempre isso é equivalente a uma efetiva corresponsabilidade na vida das comunidades, nem acaba por ter grande influência no pensar globalmente a experiência de ser Igreja, nem no edificar da comunidade eclesial. A este nível podemos destacar dois problemas evidentes: o dos organismos de participação e corresponsabilidade na vida da Igreja; os lugares de discernimento, relacionados com os problemas inerentes à vida social.


ü  Experiências e contextos de discernimento comunitário talvez possam reabrir na comunidade cristã, espaço de diálogo e de confronto de ideias, não tenhamos medo das palavras, que tornem possível reunir autonomia, responsabilidade pessoal e comunhão[33].
A pergunta que aqui se pode colocar é a seguinte: Como fazer que o testemunho, muitas vezes individual, no meio do mundo, não seja experiência de solidão, mas sim expressão de uma corresponsabilidade que se alimenta na vida de comunhão da comunidade?
Onde falte o discernimento, ou seja onde falte um exercício de compreensão profunda das realidade e das diversas situações concretas que estamos a viver, as razões de ser dessas mesmas situações acabam por se nos escapar e, deste modo, dificilmente podem ser confrontadas com o Evangelho.
Por outro lado, sem esse mesmo discernimento, facilmente podemos cair no risco de pedir ao Evangelho que dê as respostas concretas para cada situação em particular, respostas que também não serão possíveis de encontrar.
É urgente criarmos nas nossa comunidades, aos diversos níveis, momentos e estruturas de discernimento, que nos permitam ler os sinais dos tempos, que permitam pôr esses mesmos tempos em diálogo com o Evangelho de  modo a ir possibilitando e incentivando a constituição de uma amadurecida e adulta opinião pública no interior da Igreja.
 Já há 25 anos, por ocasião do Congresso Nacional dos leigos, Borges de Pinho afirmava que:
"na falta de uma autêntica, esclarecida, corajosa opinião pública interna a nível da Igreja em Portugal, estará um dos factores determinantes do pouco sentido de corresponsabilidade dos cristãos e de alguma ineficácia no deixar transparecer a força do testemunho cristão."[34]
E a criação destes espaços deve depender essencialmente dos leigos. Este é um dos desafios onde verdadeiramente se pode concretizar a autonomia e a corresponsabilidade dos leigos. Agora bem, se estes espaços devem surgir a partir da legítima e corresponsável iniciativa de cristãos verdadeiramente interessados em assumir o apostolado que lhes é próprio, não se deve estar à espera que seja a hierarquia a promovê-los, tal como dela não devem necessitar de aprovação.

ü  Também o diálogo intra-eclesial tem vindo a enfraquecer-se, o que empobrece a comunicação na própria comunidade eclesial e enfraquece a criação de uma cultura de inspiração cristã, que se vai tornando, assim, cada vez mais abstrata e genérica.
Em certo sentido os leigos acabam por ter poucas possibilidades te tomar a palavra na Igreja. Falamos muito, às vezes até demasiado, mas vão faltando lugares efetivos que permitam aos cristão dialogar verdadeiramente uns com os outros. Por vezes, parece até existir uma certa falta de interesse em criar esses lugares e estruturas, pois só o agir parece revelar ter importância[35]
Daqui brota o desafio de pensar a sério e em todas as suas consequências o diálogo intra-eclesial como verdadeira reciprocidade e não como um dar e receber unilateral. Porque é tão difícil, ao próprio Concílio vaticano II e, depois dele, ao ministério magisterial e pastoral da Igreja admitir um diálogo intra-eclesial em reciprocidade, tentando a partir dele discernir e identificar a vontade de Deus quanto à configuração e ação da Igreja no nosso tempo, interroga-se Hermann J. Pottmeyer[36].

ü  A reflexão acerca da identidade laical tem hoje de continuar a fazer-se. Ainda está demasiado presente a afirmação de uma identidade marcada pela oposição que resulta do binómio clérigo-leigo, pelo que é necessário  procurar definir  quais são os aspetos característicos, ainda que porventura não exclusivos, de uma identidade laical.
Nessa tentativa de procura podemos avançar com alguns desses elementos que deverão ser sempre refletidos tomando como núcleo polarizador o significado teológico-eclesial da vivência existencial da «secularidade»: a consciência baptismal/crismal; a fidelidade aos dons do Espírito; o empenhamento direto e imediato nas tarefas quotidianas da construção do mundo; a diversidade concreta de inúmeras vocações e histórias irrepetíveis de vida[37].

ü  O Decreto AA afirma que o apostolado dos leigos, na ordem temporal, deve ter em conta as leis próprias que regem as coisas terrenas, e para as quais  vale a competência e a capacidade própria dos leigos. Aqui estamos perante um reconhecimento explícito da autonomia das realidades terrenas em que atuam os leigos.
Mas o decreto também afirma que o destino final de todas as coisas em Cristo não só não priva a ordem temporal da sua autonomia, mas antes aperfeiçoa a sua força e valor, adequando-a para a vocação total do ser humano sobre a terra. Por isso essa ordem temporal deve ser renovada conforme os princípios superiores da vida cristã (cf. AA 7).[38]
Afirma-se, igualmente, que na sua atuação, tanto na ordem temporal como na ordem espiritual, o leigo, "que é simultaneamente fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã." (AA 5), o que é claramente um critério decisivo para delinear a autonomia dos leigos no seu apostolado. Também na GS, como vimos, este critério é aludido (GS 43). A consciência retamente formada representa o horizonte mais vasto de autonomia que o Concílio reconhece ao apostolado dos leigos.[39]
Contudo, tal como na LG e na GS, o texto conciliar do Decreto AA não precisa o significado que este critério pode ter e, depois de ter enunciado este princípio, acaba por não o desenvolver verdadeiramente[40]. Na verdade, as primeiras afirmações do Decreto acerca do apostolado dos leigos devem depois ser lidas à luz do capítulo V relativo as relações com a hierarquia. Aí, o discurso torna-se bem mais prudente, afirmando-se que todo o apostolado, quer quando exercido individualmente, quer quando em associação, deve ser inserido, na devida ordem, no apostolado de toda a Igreja, em união com aqueles que o espírito Santo colocou à cabeça da Igreja, estabelecendo aqui um outro critério que é o da subordinação às diretivas da hierarquia. (cf. AA 23)[41]
Ao falar das associações de natureza apostólica, o Decreto AA estabelece, como vimos, uma diferenciação reconhecendo uma maior margem de autonomia às associações de «apostolado indireto», enquanto que as associações de «apostolado direto» devem ter uma relação mais estreita com a hierarquia em virtude da missão específica que têm decorrente de um mandato. Mas tanto no caso de uma associações, como em outras, é sempre competência da hierarquia, em última análise " ensinar e interpretar autenticamente os princípios morais que se devem aplicar nos assuntos temporais.", bem como "julgar, depois de bem considerar todas as coisas, e servindo-se do auxílio dos peritos, da conformidade de tais obras e instituições com os princípios morais e determinar o que for necessário para conservar e promover os bens de ordem sobrenatural." (AA 24)  E tanto umas como as outras necessitam obter a aprovação da legítima autoridade eclesiástica. (AA 24)
Apesar do claro reconhecimento da importância e da dignidade do apostolado dos leigos e mesmo da afirmação do seu papel insubstituível  não se abandona totalmente uma perspetiva eclesiológica de uma subordinação em relação às diretrizes da hierarquia.

Não se pode ignorar nem sequer secundarizar a novidade e a renovação que o Concílio introduziu na reflexão acerca da identidade e missão dos leigos, no entanto, temos de reconhecer que existem questões em aberto em relação ao verdadeiro alcance dessa renovação e novidade. . Mas os caminhos foram abertos e cabe agora a todos nós, enquanto comunidade, continuar a percorrê-los.

Juan Ambrosio


[1] cf Giovanni Turbanti, A autonomia dos leigos da Lumen gentium à Gaudium et spes, in Cetina Militello (coord), Os leigos depois do concílio. A identidade e a missão dos cristãos, Paulinas Prior Velho 2012, 11-13.
[2] A Caggiano, Natura della chiesa e del suo apostolado, in Actes du 1 Congrès mondial pour l'apostolat des laics, COPECAL, Roma 1952, 1, p 200-201, citado por Giovanni Turbanti, A autonomia dos leigos, 17, nota 12.
[3] Cf Ney de Sousa, Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II, in Ciberteologia. Revista de teologia e cultura 2 (Out/Nov/Dez 2005) 3
[4]  cf Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 14.
[5] Cf Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 14.
[6] Ibidem, 15.
[7] Carta Apostólica In Spiriu Sancto,8 de Dezembro de 1965, no encerramento do Concílio.
[8] São 10 Comissões (1- Teológica, 2- Administração das Dioceses, 3 - Clero e Povo, 4 - Sacramentos, 5 - Liturgia, 6 - Estudos Eclesiásticos, 7 - Ordens, 8 - Igrejas Orientais, 9 - Missões, 10 - Apostolado dos Leigos) e 2 Secretariados (1 - Para os Meios de Comunicação Social, 2 - Para a Unidade dos Cristãos). Foi também constituída uma Comissão Central, presidida pelo Papa, com a presença dos presidentes das 10 Comissões e outros Cardeias e Bispos.
[9] Cf Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 30, nota 38.
[10] Cf Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 20-22.
[11] Cf Ibidem, 23.
[12] CF Ibidem, 25-26.
[13] Cf Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 28-29.
[14] Cf Introdução ao Decreto Apostolado dos Leigos, Secretariado Nacional Apostolado de Oração, Braga 1967, 235.
[15] Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 30, nota 40.
[16] Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 31-33.
[17] A LG é aprovada neste período de trabalhos. Nela a reflexão da Igreja como Povo de Deus rompe com o conceito institucional unilateralmente jurídico e com a conceção de que a Igreja se identificava com o clero, sendo que os leigos desempenhavam nela um papel essencialmente passivo.
[18] Cf Introdução ao Decreto Apostolado dos Leigos, Secretariado Nacional Apostolado de Oração, Braga 1967, 235; Ney de Sousa, Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II, in Ciberteologia. Revista de teologia e cultura 2 (Out/Nov/Dez 2005) 20-27.

[19] Cf. Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 38
[20] Cf. Ibidem, 40
[21] Cf. Cf. Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 46
[22] Cf. El Consejo Pontifício para los Laicos, Ciudad del Vaticano 2012, 6-21.
[23] Leigos em congresso. Congresso Nacional dos Leigos. Fátima 1988, Editora Rei dos Livros, Lisboa 1990.
[24] Cf. . El Consejo Pontificio para los Laicos, 19.
[25] Cf. Ibidem, 19-20.
[26] O Cap. II da Exortação, que tem por título «Todos ramos da única videira. A participação dos fiéis leigos na vida da Igreja-comunhão, vai refletir sobre a dimensão da comunhão
[27] Paola Bignardi, A autonomia dos leigos: o percurso pós-conciliar, in Cetina Militello (coord), Os leigos depois do concílio. A identidade e a missão dos cristãos, Paulinas Prior Velho 2012, 56-57.
[28] Cf. Paola Bignardi, A autonomia dos leigos: o percurso pós-conciliar, 57-60. A interessante reflexão que desenvolve situa-se no contexto italiano, mas julgo que pode, de uma maneira geral e com as devidas adaptações,  ser alargada a outras realidades, como por exemplo a nossa.
[29]  Esta realidade era claramente visível em Itália, talvez não tanto no nosso país.
[30] Cf. Paola Bignardi, A autonomia dos leigos: o percurso pós-conciliar, 60-61.
[31] Também aqui acompanho de perto a reflexão de Paola Bignardi,  Cf. Ibidem, 61-64.
[32] De novo acompanho aqui a interessante reflexão de Paola Bignardi, A autonomia dos leigos: o percurso pós-conciliar, 64-66.
[33] Continuo a refletir a partir do texto de Paola Bignardi. Cf. Ibidem, 69-70
[34] Participação e Corresponsabilidade dos leigos na vida e edificação da Igreja, in Leigos em Congresso. Congresso Nacional dos Leigos, Rei dos Livros, Lisboa 1990, 156-157.
[35] Cf. Paola Bignardi, A autonomia dos leigos: o percurso pós-conciliar, 66.
[36] Cf. a este propósito a interessante reflexão desenvolvida por este autor em Estruturas de diálogo na Igreja e Communio, in Communio 3 (2012) 287-296 (sobretudo294-296).
[37] Tenho aqui presente o trabalho desenvolvido pelo Prof. Borges de Pinho no âmbito da disciplina «Igreja. Identidade e Missão» da Licenciatura em Ciências Religiosas. Cf. Apontamentos para uso dos alunos ano letivo 2012/2013, ponto 8.1.2. A questão da identidade laical - elementos positivos de uma identidade própria.
[38] Cf. Giovanni Turbanti, A autonomia dos Leigos, 34
[39] Cf. Ibidem, 45.
[40] Cf. Ibidem, 35.
[41] Cf. Ibidem, 36.