Pecado original

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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Bioética III - O estudo da vida: mito e ciência


De certo ponto de vista, o mais geral possível – na verdade, transcendental, pois é universal e necessário –, o estudo da vida coincide com o viver inteligente da própria vida. Quer isto dizer que o mesmo estar vital do ser humano é um estar que necessariamente implica que se pense o que se está sendo.

Talvez seja esta a grande distinção entre o que constitui o ser humano como ser humano e tudo o mais, que, tanto quanto se sabe, não dispõe de qualquer forma de pensamento deste tipo, precisamente o tipo reflexivo.

Assim, deste ponto de vista, a biologia coincide com a mesma vida vivida e pensada enquanto e como vivida pelo ser humano que a vive.

Tal forma geral de pensamento começou, como muitas outras das mais fundamentais, com o mito. Assim, encontramos no mito, não apenas nos mitos chamados ocidentais, mas universalmente distribuídas, formas de reflexão mítico-narrativa acerca de isso que é viver, como absoluto próprio e a nada redutível.

Note-se que tais formas de pensamento não são algo de arcaico, no sentido de ultrapassado definitivamente, mas persistem nos dias de hoje, constituindo a grande maioria dos sistemas de interpretação acerca do que a vida é, mesmo na biologia chamada científica, que não consegue libertar-se totalmente de formas míticas, antigas ou modernas.

Assim, não só não é rara, como é extremamente abundante, a consideração da realidade cósmica total como algo de animado, isto é, de vital e de vivo: o cerne ontológico do ser é dado segundo formas de vida – próximas ou distantes daquelas observadas no concreto da realidade comum – que são, em si mesmas, o repositório vital e vivo – super-vivo, híper-vivo – de toda a possibilidade não apenas de vida, mas de toda a forma ontológica possível. Por tal, miticamente, tais super-vidas fundamentais são consideradas divinas e os deuses são isso que se confunde essencial e substancialmente com a mesma vida em sua plenitude.

Assim sendo, a vida surge nestas formas narrativas de reflexão não como fruto de uma qualquer evolução material, sendo a própria matéria que é, também ela, fruto das necessidades próprias da vida, pelo que a relação aparece invertida relativamente ao que é a hodierna vulgata biológica: é a materialidade que resulta da combinatória da vida e não esta última que resulta daquela.

A oposição não poderia ser mais extrema, tendo consequências importantíssimas para o modo como se encara a vida, o seu papel, o seu estudo, a sua dignidade e o seu futuro.

Para o pensamento mítico, a vida é, então, algo de sagrado e o sagrado recebe o seu sentido último daquilo que a vida é como isso que se opõe absolutamente à não-vida, indiscernível do nada.

Este sentido do absoluto insubstituível da vida implicava que a sua defesa tinha de ser feita a todo o custo, mesmo que fosse necessário o sacrifício parcial da vida: apenas este sentido absoluto da vida pode explicar cabalmente a necessidade, sentida em certas culturas, de sacrifícios vitais, especialmente os humanos. Não se tratava de um capricho, mas de sacrificar uma parte, considerada insignificante perante a grandeza absoluta de um todo sem alternativa possível.

A transição para uma forma de pensamento mais marcado racionalmente acompanha a mutação geral operada pelos chamados pensadores helénicos pré-socráticos. O cosmos passa a ser considerado como algo que possui em si mesmo uma forma ordenante própria irredutível.

Este princípio próprio, que não tem de ser estritamente imanente, mas que já não é da ordem de uma narratividade personificada, assume modalidades propriamente materiais ou também materiais. Assim, se se assume, por exemplo, o ar (Anaxímenes de Mileto, fisiólogo) como princípio ontológico fundamental universal, a vida não pode deixar de ter este princípio como seu princípio próprio. E assim para todos os outros casos.

A vida passa a ter uma dimensão intra-mundana própria, irredutível a uma entidade meramente fruto de uma narratividade simbólica, mágica, sagrada, teológica. A dimensão física da vida passa a ter uma importância incontornável.

No entanto, temos de ter em consideração que o termo «física» não tem o mesmo valor semântico que assume no nosso tempo. Assim, para estes tempos antigos, a física é o domínio de isso que tem movimento, que se transforma, que evolui, que se diferencia e que se diferencia com e segundo um princípio próprio, em parte autónomo, de movimento. O resto ou não é, de todo, ou pertence a um outro domínio, o daquilo que é, mas não se move, o domínio da metafísica. Como sabemos, o exemplo mais acabado deste ser imóvel é o «motor imóvel», de Aristóteles.

Interessante é perceber que este motor imóvel pode ser visto como uma pura forma de vida apenas auto-referente e sempre plena, pelo que não tem de se «mover», dado que já não há perfeição que não possua. O tema da vida como máximo possível e real de ser e do ser retorna, agora de uma forma já racional.

Esta recondução a algo que lembra uma intuição presente no mito não representa uma negação da racionalidade emergente ou um retrocesso, mas assinala o que é o ápice da grandeza ontológica que o ser humano experimenta em sua mesma realidade: que forma de ser superior à vida tem como experiência própria sua o ser humano? Não é a vida vivida e pensada a forma mais alta de experiência que se possui? Há, na experiência humana, uma qualquer outra forma de experiência mais alta, uma qualquer forma de realidade mais elevada que tenha experimentado ou possa vir a experimentar?1

É segundo e no seio deste ambiente metafísico e físico geral que Aristóteles funda a ciência da biologia. Esta não surge como mais uma ciência desgarrada – algo que Aristóteles nunca fez –, mas como mais um elemento heurístico dedicado à descoberta do «logos» geral e particular do cosmos. Se há uma parte do cosmos que é diferenciada pelo estar na forma da vida – o que quer que isso seja, pois é isso que há que investigar –, então, é necessário que haja uma ciência adequada a esse mesmo estudo, isto é, ao estudo da vida enquanto vida, no seio do mundo da natureza, do mundo do movimento: esta nova ciência é a biologia.

Na sua amarração cosmológica geral, a vida participa de uma dimensão material, pelo que a biologia tem de ter uma vertente material. Mas a vida não é apenas matéria, sem mais, pelo que a biologia tem de ter uma vertente que procure perceber o que é isso de próprio que a vida tem e que a diferencia de uma mera mecânica material. É nisto que a biologia aristotélica se diferencia fundamentalmente da nossa hodierna, não em ser «qualitativista». Trata-se da biologia real enquanto forma e matéria em ligação substantiva e do seu estudo científico, não de uma redução da vida a uma mera mecânica qualquer.

Para Aristóteles, o tratado da vida não é o tratado da mecânica dos corpos inexplicavelmente animados, mas o tratado da relação da matéria com isso que a transcende e a faz mover, em absoluto. Por outras palavras, é o tratado da relação entre a física da matéria e a física do que transcende a matéria.

Estranhamente, no recente estudo das relações entre a «matéria e o espírito», encontramos um ressurgimento desta temática, fundamental para a definição lógica posterior do que é uma bioética. Tal percebe-se bem, se pensarmos que, se a vida nada mais for do que um mero arranjo efémero de entes puramente materiais, então, não tem e não pode ter grande importância ontológica, pois mais não é do que lixo cósmico adiado e nada mais, para além do prazo de adiamento: para quê preocuparmo-nos com lixo adiado?

A crueza destas palavras é terrível, mas a redução de toda a vida a esta materialidade irredutível faz de toda a vida algo de insignificante, pois não tem futuro algum: por mais que subsista temporal e materialmente como um todo – dado que individualmente não tem qualquer relevância senão como mero elemento de um todo, para que contribui, esgotando-se a sua grandeza própria nesta mesma contribuição –, acabará com o fim do universo material. Terá, deste modo, razão Fernando Pessoa, quando fala de «cadáver adiado que procria»,2 mas que procria para um nada de sentido, num universo cujo fim último é ser cadáver, entropicamente gerado. E mais nada, absolutamente.

A tentativa de resposta a esta questão – ou de fuga a esta questão, se se preferir – foi dada através da intuição – para quem a teve, e muitos houve que a não tiveram – de uma forma de vida, dita inteligente, espiritual, que perpetua o que foi a vida biológica comum. O sentido da vida salva-se através da presença na vida – mormente na humana – de uma dimensão trans-física-material que permite uma sobrevivência memorial-agente do que fora a vida bio-espiritual (a este propósito, é célebre a defesa deste tipo de sobrevivência lógica feita por Platão, na sua obra Fédon, cuja leitura é sempre recomendável).

A biologia

A biologia fundada por Aristóteles interessava-se, assim, por explicar o que era a vida, em todas as suas formas, integrando dimensões materiais e imateriais. O seu esforço de classificação, de sistematização, de recolha o mais universal possível e de relacionamento das diferentes formas de vida, de testemunhos relativos a aparentes formas de vida anteriores permitiu manter vivo o interesse pelo tema durante mais de dois mil anos.

Durante estes dois mil anos, a especulação sobre a vida em seu sentido biológico-científico assentou sobre as descobertas aristotélicas. E apenas muito recentemente se verificaram modificações fundamentais no estudo biológico-científico da vida. A grande transposição não se verificou ao nível de uma passagem de uma biologia qualitativista para uma biologia quantitativista, mas, sim, ao nível da integração do estudo da biologia no âmbito mais vasto de estudos físicos mais latos, nomeadamente ao nível físico-cosmológico e ao nível bio-médico. É a este último nível que a bioética vai relevar.

Os grandes avanços da biologia registaram-se na relação com a arqueologia e com a cosmologia (astronomia, astrofísica, física quântica e relatividade), por um lado, e com a aplicação médico-científica (vacinação e estudo da origem da vida), por outro.

Muito brevemente, podemos afirmar que a especulação acerca da origem cronológica da vida bem como da sua origem substancial permitiram à biologia um novo fôlego epistemológico.

Quando teria sido criada a vida? Quando teria sido criado o mundo? Estas perguntas mobilizaram muito do pensamento especulativo e muitas outras pessoas mais dedicadas à investigação natural do que à mera especulação literária ou livresca. De entre estes últimos, salientam-se os fundadores da moderna paleontologia que, de martelo em punho, vagueavam por escombreiras e turfeiras, em busca de restos antigos de formas inequivocamente associadas à vida, a formas de vida que já se sabia serem muito antigas. Mas quão antigas?

Uma interpretação literal da Bíblia dava um número de muito poucos milhares de anos desde a criação do mundo. As descobertas arqueológicas dos paleontólogos (e dos geólogos) mostravam, sem margem para dúvida, que as camadas mais profundas, plenas de achados monumentais de formas de vida ancestrais, eram muito mais antigas do que tal interpretação poderia permitir calcular; podiam atingir milhões de anos.

Por outro lado, se o sol tivesse a idade suposta pela interpretação literal da Bíblia, a sua produção de calor poderia ser explicada através dos modos então conhecidos de produção de calor, por exemplo, através da queima de algo semelhante ao carvão. Mas, se fosse antigo de milhões de anos, não era possível saber que «combustível» utilizaria, pois, por exemplo, um sol de carvão mineral só «arderia» poucos milhares de anos, nunca milhões. Mas, então, como se teria criado e sustentado a vida, se os paleontólogos tivessem razão?

Apenas com as descobertas da física atómica intra-nuclear, com as contribuições da física quântica de Planck e da física relativista de Einstein, foi possível encontrar uma modalidade de produção de energia, de que o «calor» do sol faz parte, que pudesse justificar uma existência solar de muitos milhões de anos, que permitia, por sua vez, explicar a presença de formas de vida também com muitos milhões de anos no planeta Terra.

Esta longevidade do sol e do sistema solar permitiu encontrar tempo suficiente para formas evolutivas como as propostas por Darwin ou Wallace. A descoberta de Mendel do esquema base da hereditariedade físico-biológica forneceu o sistema lógico-material-mecânico que permite a variação onto-biológica que suporta toda a evolução biológica.

Assim, a vida ganhou uma dimensão temporal e uma profundidade cosmológica no seio desse mesmo tempo que não poderia ter tido anteriormente. Por outro lado, pareceu ser possível reduzir toda a dimensão da vida a uma mera combinatória material, mormente determinada por anti-mecanismos totalmente casualistas.

A espantosa aventura técnico-científica que foi a descoberta e aplicação da vacinação, primeiro (Jenner), e, depois, o estudo feito para perceber a forma como a vida se gerava, na ligação com a luta contra certas doenças (Pasteur), constitui um capítulo fundamental quer para biologia como tal quer para a bioética.

Até que ponto as formas de vida, aparentemente mais díspares, estão relacionadas entre si? Que laço ontológico vital fundamental pode haver entre este rapazinho doente com varíola, uma vaca e a doença que o ataca? Foi a resposta a esta questão que permitiu a Jenner desenvolver a vacina, precisamente porque o que liga os três elementos da pergunta é a mesma vida, na forma do vector da doença, um «micróbio» (literalmente, «pequena vida» cuja existência estava provada desde a observação de tais “animálculos” minúsculos feita por Leeuwenhoek).

É a vida que é causa deste tipo doenças; mas é também a vida que pode ser o possibilitador do combate contra ela, usando a vida como processo vital, humanamente favorável, para combater outros processos vitais humanamente desvaforáveis.

Então, a vida é algo que percorre todo um conjunto aparentemente díspar de seres como propriamente isso que os une e que permite a sua inter-agência.

Quer isto dizer que é tão vivo, tão «vida», o vírus da varíola, no seu modo próprio, quanto eu, no meu modo próprio, enquanto precisamente vivos. Há algo de inapreensível que me une ao vírus e que não me une a um cristal de quartzo (embora haja outras facetas que nos são comuns).

A vida não é algo mágico, a doença não é algo mágico, a saúde não é algo mágico. São formas de a vida se dar e de a vida estar. Formas que transcorrem todos os seres vivos, enquanto vivos. Formas que não se encontram em mais forma alguma de existência.

Ora, a vida é mesmo qualitativamente diferente e mesmo diversa do restante ou não?

Pode-se passar de uma forma totalmente inanimada à vida, como se pode passar da vida a uma forma totalmente inanimada?

A vida é um "actus" de espontaneidade da matéria?

E, se é, é comum, quer dizer, a vida está constantemente a surgir do nada de si própria ou necessita de uma qualquer forma de vida de que derive?

Esta interrogação causou uma profunda e vasta polémica, havendo quem defendesse a chamada «geração espontânea» e quem defendesse a sua impossibilidade. Como é óbvio, apenas a realidade concreta pode destruir uma tal polémica.

Quem realizou a experimentação definitiva sobre este assunto foi Pasteur, que, através do processo de esterilização que recebeu o seu nome, a pasteurização, eliminando toda a presença de formas de vida das amostras e isolando-as absolutamente do meio ambiente, impossibilitou o desenvolvimento de qualquer vida, pois toda a amostra estava sem vida, biologicamente inerte.

Nas amostras não esterilizadas ou não isoladas do meio ambiente, surgiram quase imediatamente manifestação de presença de formas de vida. A conclusão é evidente e mantém-se.

Note-se que a sua manutenção tem tido um papel fundamental no que é o progresso das boas práticas de saúde não apenas em meio curativo, mas em tudo o que a higiene geral implica. Esta possibilidade (e a sua obrigação) tem um papel determinante em termos de ética relativa à saúde e à vida, em bioética, portanto. De notar, desde já, que muitas das questões ditas de bioética não passam de questões protocolares relativas a boas práticas, que são apenas de natureza mecânica, e não deveriam sequer povoar o âmbito da bioética, por não terem dignidade para tal: bastaria, para tanto, que os sujeitos envolvidos fossem bons profissionais.

De um ponto de vista bioético, estas questões foram resolvidas definitivamente há já muito tempo, pelo que o seu ressurgimento é lamentável, prova de uma profunda estupidez teórica por parte dos profissionais que promoveram tal retrocesso, prova de que, em ciência, nas suas relações com ética e política, nada há de definitivamente adquirido, tendo de se exercer uma permanente atenção teórica para que não se percam conquistas preciosas para o bem da humanidade.

Com as experiências de Pasteur, a biologia obteve resposta, pela negativa, a uma pergunta fundamental, a da origem da vida: de ordinário, não há vida que não provenha de uma outra qualquer forma de vida já existente.

Assim, resolvida esta questão fundamental, restava como questão fundamental apenas esta outra: qual a origem primeira da vida?

Todas as outras questões são ancilares ou meramente descritivas de processos cuja explicação última reside na resposta a esta pergunta fundamental. Ora, a biologia hodierna, na sua esmagadora maioria, vive da e na tentativa de resposta quer à grande questão enquadrante quer às milhentas questões pragmáticas da investigação aplicada ao dia-a-dia.

A resposta à «grande questão» tem tomado, cada vez mais, foros de tipo filosófico e teológico, parecendo que a biologia quer responder ao mistério último do ser através da resposta à origem primeira e última da vida, querendo, assim, substituir-se a filosofias e teologias como explicador universal de tudo (a própria cosmologia científica parece querer deixar-se dominar por uma tal ambição, deixando para si mesma um papel ancilar relativamente ao papel da biologia).

Por outro lado, o grande esforço científico da biologia destina-se não à resolução mais ou menos especulativa do sentido biológico da vida e do universo, mas ao serviço de grandes complexos de poder instituído, seja este político, político-militar ou político-económico.

As bio-tecnologias parecem imperar, na feitura cada vez mais apressada de um «bravo mundo novo», em que o poder político possa ser estendido à manipulação da própria matriz lógico-informacional da vida, o que permitirá abrir as portas (na realidade, já estão escancaradas) a toda uma produção de monstros biológicos, o que, após a derrota da Alemanha nazi e do Japão militarista e da queda do Muro de Berlim, se pensava ser estranha coisa presente apenas nas mentes de Lucas e Spielbergs, mas que irão muito brevemente ser as grandes questões «bioéticas» do futuro.

A desumanização da vida, em suas infinitas possibilidades, será a grande temática bioética que irá eclodir com redobrada força num futuro muito breve, acrescentando dificuldades fabricadas a um mundo de tomada de decisão vital que já é naturalmente muito complexo e complicado.



(Para uma visão diferenciada do que é a biologia, recomendamos o artigo «Biologia», in Enciclopédia interdisciplinar de ciência e fé. Cultura científica, filosofia e teologia, Lisboa, Editorial Verbo, 2002, pp. 244-254; sobre ciência e bioética, ver nossos artigos: http://www.lusosofia.net/textos/pereira_americo_da_essencia_da_ciencia_notas_reflexivas.pdf e http://www.lusosofia.net/textos/pereira_americo_bioetica.pdf).



Américo Pereira

Outubro de 2017

1 Mesmo nos relatos místicos, é difícil escapar à narração ou descrição de isso que se experimenta diferentemente como algo de vital ou de analogicamente vital, pois a única forma comparativa experimentada que não diminui a dignidade do novo experimentado é a mesma vida.

2 PESSOA Fernando, Mensagem, Lisboa, Ática, 1979, poema «D. Sebastião. Rei de Portugal», último verso, p. 42.

Bioética II - o ser e a vida


A vida é uma forma especial de o ser se dar, formando isto que é a nossa dimensão ontológica própria. É próprio do espírito humano perceber a realidade em que se insere e de que é testemunha privilegiada. Desde que se pode perceber a presença deste testemunho, encontram-se dados humanamente matriciados que revelam que há uma preocupação especial com a diferença marcada pela vida. Assim, quer nos desenhos antiquíssimos em que a vida surge representada como algo de manifestamente importante pela positiva quer nos monumentos em que a morte se encontra associada a uma qualquer forma de celebração do que fora a vida e do que parece ser a esperança numa outra qualquer forma de continuidade reformada da mesma vida, é óbvia a relevância que a diferença específica própria da vida assume.

Não se sabe e nunca será possível saber quais as posições metafísicas que tais seres humanos assumiram perante esta especificidade, mas que tinham um grande apreço positivo pela vida, tal é inegável. É facilmente intuitivo passar da nossa experiência de vida própria para uma eventual representação especulativa do que poderia ter sido a atitude espiritual de tais seres humanos perante isto de estarem vivos. O contraste com o material inerte era, como é hoje, evidente: não somos do mesmo estofo total de uma pedra. Com ela partilhamos algumas características, como o estar aí, numa certa presença material irredutível, mas a pedra manifestamente não se auto-locomove, não fala, parece não sentir, não come, não procria.

Se estudarmos a literatura mais antiga, a partir deste ponto de vista, facilmente será possível perceber que a vida adquire nela uma importância esmagadora; aliás, não hesitamos em afirmar que, sem o tema da vida como seu sustento maior, não haveria coisa alguma de importante nesta literatura. Da vida, nas suas formas aparentemente mais frustres e ancilares, à vida dos seres considerados menores, mas já mais próximos do campo semântico do interesse humano, passando pela vida dos próprios seres humanos, à vida dos deuses, que é encarada como a fonte suprema de toda a vida, de onde esta emana e se espraia, constituindo o que há de verdadeiramente importante no mundo, todo o interesse fundamental se centra em torno da tentativa de compreensão do que a vida é em si mesma, sobretudo na diferença máxima com o seu verdadeiro contraditório, o nada.

O próprio ser como um todo acaba por surgir como algo de vital e mesmo de vivo em si próprio. O mundo é um imenso vivente. Esta noção de força vital universal e integrada percorre não apenas as chamadas mentalidades míticas, mas ocorre também já dentro do campo histórico e historiográfico propriamente filosófico. O ser, no seu mais profundo de sua realidade matriz é um «bios kosmikos», uma vida cósmica.

O cerne do cosmos é entendido como vida. Esta é vista como anterior ao próprio cosmos em que o ser humano vive, pois apenas uma vida imensamente ou infinitamente poderosa disporia da força ontológica necessária para criar ou produzir tal cosmos. O sentido vital do cosmos é ontologicamente fundamental para o ser humano que vivia e vive segundo este tipo de consciência cosmológica vitalista (note-se que quem assim pensa ainda constitui a grande maioria da humanidade, ao contrário do que uma certa propaganda cientificista pode levar a crer).

Por exemplo, o primitivo «khaos» helénico pode ser interpretado como uma primeiríssima fonte absoluta de vida, totalmente informal, mas, assim, totalmente diferenciável, em formas infinitas de possível vida. A sua emergência diferenciada acaba por ser o todo do mundo que vemos e habitamos e que mais não é do que um contínuo brotar formal de vida. A própria morte mais não é do que uma forma, ainda cósmica em si mesma, de reordenar as formas de vida que se vão, com o próprio movimento vital, desgastando.1

A vida parece, assim, assumir, desde o início, e desde que existem registos monumentais, um carácter concomitantemente mundano e extra-mundano, formal e informal, físico e metafísico. Sem dúvida que a vida é entendida como a realidade suprema possível, assumida simbolicamente como tal nos mesmos «deuses», formas infinitamente concentradas de vida, modelos paradigmáticos de vitalidade e de vida real. É assim que surgem não apenas os conhecidos deuses do panteão helénico, mas também os deuses das civilizações extremo-orientais, ameríndias, polinésias, por exemplo, mas também as imagens teológicas do divino nas chamadas religiões monoteístas; Deus é vida; a vida suprema, em si mesma, é Deus.

Tal é a importância que a vida assume.

Este breve percurso pela importância inicial da noção de vida ajuda-nos a entender melhor os problemas de sentido que uma redução da vida a uma mera realidade material acarreta, eliminado quase tudo o que é humanamente relevante na mesma noção de vida. Uma possível redução puramente materialista da noção de vida e de tudo o que se encontra a jusante desta noção irá imediatamente eliminar dimensões humanas de uma noção que se confunde, em sua mais lata compreensão, com a mesma realidade humana como um todo: o ser humano é, no limite, a sua vida, plenamente entendida, pelo que qualquer redução da grandeza da noção de vida é imediatamente uma redução da mesma vida humana que manifesta.

Muitos dos supostos problemas tratados pelas bioéticas relevam necessariamente de reduções indevidas da noção de vida, com consequências também imediatas sobre a noção de vida humana e de humanidade e pessoa humana, precisamente como concretizações dessa mesma noção.2

O facto de se empregar o termo «noção» em vez do termo «conceito» deriva, assim, da necessidade de se procurar mostrar que a vida e a vida humana são realidades virtualmente infinitas em potencialidade ontológica própria, sendo, deste modo, impossíveis de ser conhecidas ao ponto de se poder delas cunhar algo como um conceito. No entanto, como pretendemos mostrar brevemente, é impossível que a humanidade tenha sequer podido ser propriamente humanidade sem que tivesse de «vida» e de vida própria sua, «vida humana», apreendido uma qualquer forma nocional, sempre imprecisa, sempre em redefinição, mas que guarda, já, algo de fundamental, de uma realidade imensa, impossível de dominar logicamente, mas passível de ser acedida através de formas muito próximas e primeiras de intuição. Talvez esta intuição primeira se possa especulativamente pôr na seguinte forma, manifesta para cada próprio indivíduo humano, enquanto sujeito de conhecimento de si próprio: «eu sou a vida que sou».

Esta é uma afirmação absoluta do ser humano em sua forma vital. Sem esta afirmação, qualquer seja o seu modo formal, não há ser humano algum. Toda a vida propriamente humana arranca desta afirmação e toda a bioética que se preze como algo de humano, tem de a ter em consideração.



A especificidade da vida



Toda a história do pensamento humano parece, então, dizer que há uma diferença irredutível própria da vida. Então que diferença é essa? É aqui que a questão encontra uma barreira epistemológica: aquele que pretende perceber o que é definitivamente próprio da vida, supostamente «o que a define», é, também ele, um ente que participa de isso que busca delimitar, definir. Uma situação formal sujeito-objecto, típica da ciência, é impossível neste caso, pois o mesmo sujeito é, também e necessariamente, objecto.

Tal significa que não é possível uma «ciência da vida» no sentido objectivo das mesmas «ciência» e «vida». A vida não pode simplesmente perguntar objectivamente acerca de si mesma. Tal implica que a biologia, enquanto questionamento sobre algo de que o mesmo questionante participa não é possível.

Assim, a biologia como ciência não é possível.

Mas, então, não há, há já muito tempo, constituída como tal, uma ciência chamada «Biologia»?

Sem dúvida que há, desde Aristóteles, uma actividade que se dedica a perceber o que é a vida, mas o que aquela nunca conseguirá será distanciar-se objectivamente da mesma vida, que também é, para poder sobre ela trabalhar objectivamente.

Assim sendo, o que a biologia faz é estudar parcialmente manifestações de isso que se revela como «biológico»; mais nada. Quando se pergunta: «mas, então, o que é a vida?», nenhuma resposta cabal emerge, nenhuma pode emergir. As respostas são todas laterais ao que deveriam dizer.

A impossibilidade de se responder substantiva ou essencialmente a esta questão levou a que se adoptasse uma abordagem meramente funcionalista, que permite explicar eventualmente todo o movimento físico interpretável como biológico, mas continua a não responder à questão fundamental.

Ora, o que é mesmo específico da vida?

Indubitavelmente, a vida surge como uma forma de movimento, manifestamente físico, entre outras formas de movimento físico. Não há, na nossa experiência, qualquer forma de vida que não se manifeste como forma qualquer de movimento. Mesmo nas versões metafísicas de vida, esta não existe senão como forma de movimento, por vezes tão subtil que se confunde com uma total quietude, mas que não é a quietude do nada, antes a quietude do movimento absoluto a que nada se opõe; algo como um movimento em que a inércia é concomitantemente nula e infinita (assim, o «motor imóvel» de Aristóteles).

Mas, neste nosso mundo, vida implica movimento. Todavia, tem de implicar algo mais ou todo o movimento seria vida e tal não sucede. A vida, então, supõe o movimento, mas é algo mais do que isso; pelo menos, é uma forma diferente de movimento.

Que diferença é esta?

A vida é a forma de movimento que coincide com o seu próprio princípio de movimento: todas as outras formas derivam o seu movimento de algo que lho confere exteriormente. A sua matriz de movimentação é análoga ao choque, do famoso exemplo das bolas de uma mesa de bilhar às três tabelas. Nenhuma destas bolas tem em si o movimento como princípio de mudança. O movimento vem-lhes de fora e delas não depende, não lhes é consubstancial – parece ser o termo mais apropriado. Mesmo que pensássemos uma mesa sem qualquer forma de perda de energia e um movimento futuramente infinito das bolas, o movimento inicial que estas têm depende sempre da comunicação de algo exterior. Se esta comunicação não ocorrer, nada há nas bolas que as faça movimentar-se. Este movimento é, assim, heterónomo. Inexistente sem a influência externa. A sua persistência é meramente inercial; a sua manutenção apenas função inercial do choque transmissor. Não faz parte do ser das bolas.

A fonte de movimento na vida, em isso que é vivo, faz parte do ser de isso que está vivo. Sem esta coincidência ontológica, não há vida ou movimento como vida, apenas mais um movimento, como o mencionado das bolas de bilhar. O movimento vital é, assim, autónomo. Sem esta autonomia, não há vida.

Este movimento de que aqui falamos é o movimento segundo a diferença, de que a translação espacial faz parte e de que é apenas um exemplo.

Percebe-se o que se quer dizer, através do seguinte exemplo. Deste ponto de vista, a diferença entre um corpo (que só é corpo porque está vivo) e um cadáver reside no facto de o cadáver já não possuir princípio algum motor, próprio seu, capaz de o fazer diferenciar-se (se cair da mesa de autópsia, tal deve-se apenas a forças exteriores que o mobilizam, não a qualquer princípio motor interior).3

Assim, e sabendo que não é possível definir o que seja a vida, podemos perceber que tudo o que lhe diz respeito concerne a um princípio interior de movimento, de diferenciação, independente de tudo o mais, enquanto princípio, mesmo que dependente em termos operacionais. A vida começa, deste modo, por ser uma real possibilidade, podendo, depois, ser uma realidade de diferenciação principialmente autónoma.

É esta principialidade autónoma que justifica a presença da vida num universo em que a entropia pareceria impedir a sua existência, cuja realidade se mantém à custa de enorme dispêndio de energia, dispêndio que, mais tarde ou mais cedo, anula a vida como tal.

Mas, enquanto dura, a vida é a prova de que é possível haver ordem anti-entrópica auto-mantida no universo. Mais: o segredo de sobrevivência da vida reside na outorga de um sistema de prolongamento que não depende do mero indivíduo, mas confia na pluri-individualidade e na transmissão interior da mesma possibilidade de sobrevivência vital, através dos diferentes modos de reprodução.

Assim, ainda que de modo finito e talvez breve, a vida como tal consegue contornar a entropia, passando a outros seres, através de tal passagem, também vivos, a possibilidade de terem em si a mesma capacidade de diferenciação autónoma.

Deste modo, o que é verdadeiramente próprio da vida é esta possibilidade e capacidade de transmitir a potência vital, como princípio interior de movimento próprio, irredutível a qualquer outra coisa: a sua redução, por exemplo, a algo de material, significa a sua destruição como tal. Esta capacidade é tão importante que a mesma continuidade vital, considerada de forma mítico-analógica, é dita como a mesma essência e substância divinas: os deuses ou Deus são o que são porque são esta vitalidade sem fim (quem assim for será como os deuses: a vida eterna, pedra filosofal...).

Sempre que se procura explicar o próprio da vida através de analogias com o que não é vida, elimina-se o próprio da vida. Assim, dizer que a vida é ordem, nada diz de substancialmente diferente relativamente ao restante do universo, que também é ordem. Se se quiser começar a adjectivar, cai-se, querendo precisamente o contrário, em formas míticas ou metafísicas. Nada de novo acrescenta dizer-se que é uma «ordem especial» ou algo no género. A vida também é ordem, claro que é «especial», mas não é só ordem e sua «especialidade» é precisamente o que se quer perceber.

O aprofundamento racional do que seja a vida reconduz-nos a territórios míticos ou metafísicos, aqueles mesmos que a ciência diz querer evitar. Assim, o que se pode dizer de certo acerca do próprio da vida é que é isso que nos permite, em absoluto, questionarmo-nos acerca do que é a vida.

O mais são descrições ou narrações funcionalistas, adaptadas à cultura vigente, como o foram as dos tempos bíblicos ou outros.



Para uma leitura crítica aprofundada acerca da relação da biologia com a bioética, recomendamos a leitura do nosso estudo: «Bioética? Da relação entre a vida e a biologia», publicado on-line em www.lusosofia.net.



Américo Pereira

1 De notar que não é, como se diz habitualmente, o tempo que esgota ontologicamente os seres, mas são estes que se desgastam ontologicamente em seu movimento ontológico próprio, assim criando o tempo. Segundo esta mentalidade, a vida surge sempre como uma forma de empréstimo de possibilidade, que tem o seu máximo de possibilidade no momento inicial e que vai sendo diminuída à medida que se vai diferenciando e aparentemente crescendo. Fundam-se aqui os chamados mitos da idade de ouro inicial da humanidade.

2 Não é mera coincidência que o primeiro grande programa de eutanásia tenha sido pensado e implementado logo nos primeiros tempos do regime nazi. Foi, aliás, o percursor técnico e logístico do programa mais geral de eliminação de «indesejados», que incluía, para além de pessoas judaicas e outras racicamente incorrectas, segundo os executores, pessoas homossexuais, pessoas com problemas mentais e com toda uma variedade de doenças que as tornavam inúteis ou prejudiciais ao regime nazi. O «holocausto» mais não é do que um super-programa de eutanásia de todos aqueles cujas vidas incomodavam de alguma forma o regime nazi. Tratou-se da implementação de um princípio onto-cosmológico de morte, por oposição (com origens metafísicas) a um princípio onto-cosmológico de vida. Tratou-se de uma nova e radical forma de cultura que inverteu completamente o sentido último universal, transformando o motor do cosmos de uma força infinita de vida para uma força infinita de morte. Como é evidente, o resultado não pode ser senão o da morte total do cosmos. Os próprios proponentes desta mutação cosmológica puderam experimentar as consequências lógicas do seu pensamento. O símbolo gráfico desta nova formulação principial cosmológica podia ser visto na forma da caveira que, por exemplo, os famigerados SS usavam no boné da sua farda para-militar. Sobre este assunto, consultar: LIFTON Robert Jay, The Nazi Doctors. Medical Killing and the Psychology of Genocide, s. l., Basic Books, 1986, XIV + 561 pp., bem como o nosso estudo: «Eutanásia: a solução final», em http://www.caritas.pt/cr/index.php?option=com_content&view=article&id=536:eutanasia-solucao-final&catid=60:etica&Itemid=64.

3 Amarra aqui o sentido subjacente à expressão popular «enquanto há vida, há esperança», pois percebe-se que apenas a presença do tal princípio interior de movimento pode permitir a diferenciação, que é o sustentáculo da «esperança». Desaparecido aquele princípio, deixa de haver «esperança», isto é, qualquer possibilidade de movimento autónomo, qualquer diferenciação, qualquer forma de vida. Isto aplica-se não apenas ao ser humano, mas a todos os seres que compartilham com ele isso de serem vivos. Tal ajuda, por exemplo, a dirimir as velhas questões acerca de os vírus serem ou não vivos, dado que têm em si o princípio de movimento próprio, seja ele dependente ou não de estímulos externos, o que é irrelevante, pois havendo estímulos e não havendo o princípio motor, não haveria sequer questão. Mas tal ajuda também a compreender que é possível haver vida desde que haja uma qualquer forma destes princípios, por exemplo, sintética (ver nosso estudo «Da essência do humano. Artificial intelligence», publicado on-line em www.lusosofia.net).

Revelação de Deus e acção para o bem - A Bíblia


Uma leitura redutoramente historialista da Bíblia, tão estulta quanto uma leitura do mesmo tipo de qualquer obra que não é historiográfica em sua essência e substância, revela uma tensão entre um Deus de amor, em sentido técnico, isto é, um Deus que quer o bem de esses de quem é Deus, e um Deus que, muitas vezes, não é um Deus de amor.

Não interessa, sequer, saber quais as razões supostamente históricas que tal originaram, pois não é possível aceder a elas e tudo o que se possa afirmar e já se afirmou é meramente especulativo, quer dizer, do ponto de vista epistemológico-historiográfico, nada vale. Não se sabe, historicamente, quem escreveu o quê, precisamente. Muito menos se sabe por que razão, exactamente, o fez. Historicamente, a psicologia, a sociologia, mesmo a nosologia subjacentes, por exemplo, à escrita humana do Pentateuco serão para sempre desconhecidas.

Por absurdo, podemos especular que o autor X, em determinado momento da narrativa, resolveu lá pôr um deus violento e ressentido porque ele, o autor, humano, humanamente, estava com uma terrível dor de dentes. Anedoticamente, podemos estender este procedimento não apenas a toda a Bíblia, como a qualquer escrito, de Gilgamesh ao Senhor dos anéis, das tragédias de Ésquilo, aos escritos de Confúcio.

Podemos fazê-lo, imediatamente, estaremos a cair sob a alçada da crítica de Xenófanes, que nos alerta para a projecção do que somos sobre as entidades sobre que pensamos, sobre que escrevemos. O papel da crítica, de toda, não apenas da textual, deve centrar-se no sentido que cada narrativa procura veicular, no contexto cultural que é o seu, mais ou menos vasto. Tudo o mais é impositivo, perigosamente ideológico, tendencialmente mentiroso.

Assim sendo, todas as grandes narrativas que até nós chegaram, como chegaram, com maior e melhor ou menor e pior passagem por meios críticos honestos, merecem, no que são e pelo que são, respeito. Sem respeito, sem este respeito, mais vale que se ignorem, deixando-as, assim, na paz que a distância à estupidez redutora permite.

Por exemplo, no velho Ésquilo, podemos ver tudo, menos a libertação da humanidade e do cosmos da tirania alógica do capricho de poderes estúpidos porque caprichosos: que a guarda do mundo deixa de ser coisa de bestas vingadoras – as Erínias – para passar a ser coisa de entidades maximamente lógicas, as Euménides, as que realizam, que actualizam o bem.

Ora, na Bíblia, pode ver-se o que se quiser, dada a riqueza narrativa que possui. Pode, mesmo, ver-se apenas aquilo que satisfaz a nossa fraqueza ou a mesma disfarçada de violenta força, fraqueza dos impotentes travestidos. Pode ver-se um deus tão violento quanto eu; um deus tão cobarde quanto eu; um deus tão invejoso quanto eu; um deus tão estúpido quanto eu. Pode. Isso e muito mais. Tudo recai sob a crítica fundamental a que já se aludiu.

Mas, de este todo possível de se ver na Bíblia, faz parte um Deus cuja grandeza activa não cabe na minha capacidade: esse que cria, sem que eu possa criar (não estamos a falar de co-criar a partir do que foi criado, mas de criar em sentido pleno); faz parte um Deus que ama infinitamente em acto, algo que eu não consigo e não consigo sequer imaginar ou inventar a partir do nada: algo que tive de receber precisamente através da narrativa, do «mito» em sentido técnico, se se quiser. Em caso de dúvida, experimente-se amar infinitamente em acto.

A Bíblia, mesmo como tecnicamente mito, não é uma narrativa histórica, em que tudo se situa onto-cronicamente ao mesmo nível ontológico. Há, nesta narrativa, um «logos» fundamental que é não apenas o essencial e substancial da sua mensagem, mas é, sem mais a sua mensagem, o seu «alpha» e o seu «omega».

Este «logos» é a salvação. Salvação para todo o ser. Salvação especial para o ser humano. Fica o convite para que se leia toda a Bíblia como o compêndio da salvação. Pode dizer-se que tal leitura não é nova. Erro: será nova para quem o fizer: que já tenha sido feito interessou a quem o fez, não nos interessa a nós, os que ainda o não fizemos. Mais: tal leitura não é algo que se faça uma vez, não é um acto de erudição ou de devaneio; é acto permanente de uma vida e deve ser feito em co-leitura com o acto presente da realidade em que estou e que semanticamente sou e, nele, está também isso a que chamo o mundo, comigo.

A criação, narrada no Génesis, não é acto historiográfico, mas esse acto que consubstancia a primeira e a grande graça de Deus para com o mundo: pô-lo em ser. A criação do ser humano corresponde à possibilidade de haver uma entidade que pode ser como auto-poeta de seu ser e, sendo-o, de sua própria salvação. Mas salvação a partir do dom de Deus, isto é, sempre com Deus. Um Deus que acompanha, mas não se substitui. Um Deus que convida, mas que nunca força; um Deus que é Pai, mas não é autómato escravo dos caprichos do filho; um Deus que permite que se peque, para que se possa não pecar; um Deus que não é sedativo, mas que também não diminui a alegria. Um Deus livre que permite a liberdade da criatura.

Seria uma besta tirânica um deus que roubasse a alegria à criatura alegre, porque a alegria é de quem a é em acto; que nome atribuiríamos a um Deus que roubasse o sofrimento a esse que é sofrimento? Tão bestial é roubar a alegria quanto roubar o sofrimento. Se queremos que Deus nos não roube a alegria, queremos que Deus nos roube o sofrimento?

Na relação com Cristo, o Pai nunca lhe rouba coisa alguma – deixaria de poder ser Deus, passaria a ser uma besta como eu sou. Deus nunca diminui a alegria de Cristo; Deus nunca diminui o sofrimento de Cristo. Acredita-se que uma e o outro, em Cristo, têm eco espiritual no Pai. O drama é ainda mais profundo e a cena do cálice põe a possibilidade da própria salvação de Cristo. É o momento narrativo pré-trágico mais profundo que se conhece: e se Cristo tivesse falhado o bem que se lhe pedia?

Como não ter tal acto eco no Pai?

Eis a real possibilidade da morte de Deus, muito mais profunda do que a forma psicológica como Nietzsche a perspectivou. Aí, Deus morreria mesmo.

Cumprida a missão, morto Cristo, nessa e por essa morte, que é afirmação suprema de vida, pois é absoluta fidelidade ao bem, ressuscitado, cumpre-se, neste ómega de realidade de salvação, o alfa de sua promessa e possibilidade, dado na e com a criação.

Posto isto, quem quiser continuar a preferir, na e da Bíblia, a narração da humana lixeira que lá se mostra porque é real, tem aí adequada recompensa. Uma das possíveis razões para que tal esteja no texto deve mesmo ser essa. Ainda assim, a contemplação do lixo da acção do humano, desde que não-auto-complacente, pode ser caminho de salvação. Santo Agostinho, esse grande perito em lixo da acção humana, que o diga. E diz. É lê-lo.

Julho de 2017

Américo Pereira

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Fácil violência, difícil misericórdia

Nas capas dos cadernos que, há muito tempo, recebi quando iniciei a Escola Preparatória, encontrava-se inscrita a seguinte máxima: «a violência é o argumento do incompetente».
Várias dezenas de anos de estudo da guerra demonstram-me a radical verdade de tal inscrição.
 A violência é sempre manifestação de incompetência, de uma incompetência que promana de algo muito profundo na ontologia humana, que é propriamente a negação do que há de activo na ontologia humana e que constitui, literalmente, a impotência ética, a impotência da acção no sentido do bem.
Se fosse possível a magia de tornar a prosopopaica humanidade em real pessoa, poder-se-ia dizer que esta mesma humanidade sempre soube de tal, ou, pelo menos, sempre desconfiou de tal. Esta noção de impotência ética – que é onto-antropológica, pois encontra-se na própria matriz activa do ser humano, na original fonte de todo o seu ser como acto próprio – é isso que sempre surge nos mitos cosmogónicos e cosmológicos, quando, precisamente, a cosmogonia se revela impotente para o bem, quando a cosmologia se torna numa qualquer variante de uma «caologia» de uma «cacologia»: quando o mal surge. E surge sempre.
É assim em todos os mitos a que acedi. O mal é sempre da ordem da impotência. Quando bem disfarçado, parece ser da ordem da potência, mas, olhado mais atentamente, trata-se sempre de uma potência relativamente menor, logo, na menorização que é, de uma impotência.
É a impotência do Gilgamesh, que pensa que quer a vida eterna, mas que a não agarra quando a tem na mão, literalmente. A impotência do Satã que, esperto, questiona, junto de Deus, a bondade de Job; a impotência da mulher e dos falsos amigos de Job, bons para acefalamente criticar o que não compreendem, maus para amar o que necessita de amor. A impotência de Aquiles perante o desejo de vilipendiar o seu contra-par, Heitor, vileza que recebe como prémio a morte entrada pelo único poro possível, com a divina pontaria que demonstra o que é a verdadeira potência.
Mas é também a impotência de homens e deuses perante a grandeza humana de Édipo, pelas Erínias guardado no divino santuário da ordem do mundo. Humana potência indefectível do errante e sofredor Édipo, cujos pés padecem por ancestrais impotências de deuses apenas potentes quando metamorfoseados em divinas bestas violadoras de meninas.
A impotência de Creonte perante a avassaladora potência de Antígona, fiel seguidora dos pés de seu pai, sem medo de homens, amando a ordem e, nela e com ela, os irmãos, que, na violência da desordem, um a outro se mataram.
Por fim, a impotência do diabo perante o senhorio da vontade de Jesus, manifestando, na oposição do «não» à tentação de poder dos impotentes, o modelo do que será a vitória sobre a impotência das impotências que é a morte.
E não nos enganemos: esta morte sobre que Cristo triunfa não é a «irmã Morte», de Francisco de Assis, mas a morte como aniquilação. Esta morte não tem irmãos ou relação qualquer. É o absoluto da impotência e chama-se «nada».
Potência absoluta, impotência absoluta: Deus e o nada.
Voltemos à máxima inscrita no velho caderno. Deus, que é exactamente omnipotente – percebe-se que como bem, para o bem – é, assim, esse que não usa violência. A violência é a marca do impotente, do incompetente. É porque é incapaz de criar que o impotente é violento: no ilusório modo perverso de o acto do violento ser, nada parece ser mais próximo do criar do que o destruir; ambos parecem demonstrar capacidade infinita de poder. É o que a imagem do contraste entre o «sete» divino da perfeição e o «seis» diabólico da «quase-perfeição», da paródia da perfeição, simboliza.
No entanto, de facto, toda a criação, porque toda ela introduz um absoluto de novidade no ser – irredutível a tudo o que antecedia –, é sempre manifestação de infinito poder, tal é a «energia», o acto necessário para «arrancar» o novo ao “nada” de si próprio que “substitui” (sim, a expressão é mesmo difícil, pois estamos no limiar do pensável).
Mas a energia, o acto necessário para destruir seja o que for – dado que não é possível aniquilá-lo, «nadificá-lo» – é sempre finita, logo, infinitamente menor.
Se a criação é própria dos «poietas», dos poetas do ser – como análogos de Deus, poeta infinito –, a violência é própria das bestas, dessas em que se tornam os seres humanos quando, em vez de introduzir bem no real, neste destroem bem ou impedem bem de surgir. É esta a definição do pecado, assim sinónimo de violência. É isto que somos, que eu sou quando peco: violento, impotente, incompetente.
Quanto aos que defendem algo como a «violência criadora» ou a «destruição criadora», conviria pensar no que é que há de criador em destruir um bem? Não está em causa o que pensam que é um bem, o que é subjectivo, mas algo que é ontologicamente um bem, como, por exemplo, o ser dos próprios. Ou será que, como quando as incómodas excepções ameaçam a validade dos argumentos, a eles, aos próprios, não se aplica o “conceito”?
É violência todo o acto que atenta contra um bem concreto ou possível de alguém (por extensão, de algo). Deste ponto de vista – que nos ajuda a perceber melhor e de forma realista o que em Francisco de Assis parece ser um traço puramente afectivo –, toda a nossa existência se funda em actos de violência, de que, aliás, não nos podemos, em absoluto, alienar. Biologicamente, vivemos da violência que necessariamente exercemos, como seres heterotróficos que somos, sobre outros seres.
A resposta radical extrema residiria na negação desta condição, pela nossa mesma morte. Mas esta não é também, nestas condições, uma violência? Se não é, que estamos ainda a fazer vivos?
Na realidade, estamos condicionados a viver – é esta a condição mundana, não há outra – entre a violência da negação do nosso próprio ser e a violência que temos de exercer para podermos continuar a ser. É esta condição que a expulsão do paraíso significa. No paraíso, não há violência, pois nada é destruído. A condição extra-paradisíaca significa que a vida sempre se mantém sobre o sacrifício da vida.
Então, estamos condenados à violência? De um ponto de vista biológico parece que sim. E, se fossemos apenas seres biológicos, toda a nossa vida seria esta dinâmica de violência. Aparentemente.
Mas, na pura biologia, inconsciente de se ser o que se é, há violência?
Precisamente, não. Na ratio própria da natureza não humana, o que se encontra sempre é uma dinâmica e uma cinética de força, de forças, em que o que tem de ocorrer ocorre, sem que se possa falar de algo como «violência».
A violência não pode ser sinónimo de força ou, então, tudo o que é violência em termos humanos perde o seu sentido próprio, diluído na semelhança com o uso da força na natureza não humana.
Nada melhor para desculpabilizar um SS que assassinou ou ajudou a assassinar milhares de crianças em Treblinka ou em Auschwitz, por exemplo, do que comparar a força dos seus actos com a força dos actos de um macho de leão que mata instintivamente os filhotes da leoa que naturalmente se movimenta para possuir. Tão violento é o SS quanto o leão? Então, o SS tem o mesmo mérito ou demérito que o leão.
Não foi um mundo intelectualmente alicerçado sobre este tipo de relativização o mundo, este mundo que contemporaneamente se construiu e de que agora parece haver quem finalmente se dá conta de ser como é?
Não se tem vindo a optar globalmente – não é o mesmo que «universalmente», o que seria manifestamente falso – pela facilidade da humana violência, a todos os níveis, negligenciando a trabalhosa e difícil misericórdia? Que é isso de um mundo de competitividade sem violência e necessárias vítimas? Que é isso de um mundo de valor construído não sobre a realidade de bens económicos – temos ironicamente de repetir – «reais», mas sobre a irrealidade de outros valores, por exemplo, fazendo dinheiro a partir de dinheiro, isto é, insuflando vazios símbolos, que é o que o dinheiro é?
Como posso passar o tempo todo – o acto todo – a competir, pensando que o que chega em segundo lugar é o «primeiro dos últimos», sem com isso produzir violência? Como viver na crista da onda civilizacional às custas do trabalho escravo de outros sem com isto produzir violência?
Por fim, como resolver esta situação que se criou sem ser através de um aumento – aqui, sim, como sempre na guerra – exponencial de violência, situação, aliás, para a qual nos encaminhamos a loucos passos largos e de corrida como, muito bem, o Papa Francisco tem afirmado, quando diz que já se está a viver a Terceira Guerra Mundial?
Numa divina ironia, a única possível boa saída para a inércia de violência em que nos encontramos mergulhados é a misericórdia, essa mesmo que o Papa Francisco quis que fosse meditada.
Francisco tem razão: ou interiorizamos rapidamente a dinâmica e a cinética da misericórdia ou iremos conhecer o verdadeiro poder dos impotentes, dos incapazes de misericórdia (o que Francisco nitidamente não é).
Março de 2017
Américo Pereira


Trabalho, técnica e ecologia

Através dos testemunhos monumentais de que dispomos e que, em sua mesma variedade multímoda, apresentam características estruturalmente comuns a toda a humanidade, permitindo, através deles, que saibamos que estamos perante monumentos de origem propriamente humana e não com outra origem qualquer, temos conhecimento de que quem tais monumentos criou se inteligia como fazendo parte de um todo universal, isso a que chamamos cosmos e que define o campo possível de inteligibilidade e de vida de e para a humanidade. A este campo reconhecemos como o lugar próprio de existência do ser humano: o seu «topos», a sua habitação universal, a sua «oikia» ou «oikos».
O habitar humano geral é um habitar segundo o «logos» próprio de cada ser humano e de todos os seres humanos. É, literalmente, uma forma «ecológica» de ser e de viver. A vida humana, desde que há sinais inequívocos de que há algo como uma «vida humana», é uma vida ecológica.
«Ecologia», o termo e a noção que transporta, não surge aqui como uma categoria moralizadora, como uma eventual «forma correcta de habitar», mas como, simplesmente, a «forma de habitar», pois não há outra. Não é, pois, uma noção moralizadora, mas uma noção ontológica.
Nos mitos antigos – e em alguns modernos, os propriamente «ecológicos», em sentido moralizador –, o ser humano surge sempre, e de novo, como habitante de um mundo totalmente integrado e totalmente explicado em sua matriz ontológica pelo próprio mito fundador. Não há separação entre o mundo e o ser humano. Qualquer eventual separação faria com que imediatamente a possibilidade ontológica humana ficasse ameaçada.
É com o surgimento da atitude filosófica que surgiu a possibilidade de distanciamento lógico entre o ser humano e o mundo de que faz parte, que pode passar a ser perspectivado como de natureza diferente da do ser humano. Se esta possibilidade se realiza, imediatamente se instaura uma cosmovisão dualista em que o ser humano e o mundo já não partilham do mesmo ser fundamental, perdendo-se a inteligência activa do acto ontológico que une ser humano e mundo. O ser humano passa a viver e a pensar como se houvesse uma solução de continuidade ontológica entre si e o mundo.
O mundo deixa de ser coisa do mesmo estofo ontológico que eu, não havendo qualquer relação entre os dois que não seja uma mera relação de co-existência. Nada impede, então, que, nesta co-existência, que mais não é do que um paralelismo de existências, que uma delas domine a outra, pois, não havendo consubstancialidade entre ambas, a relação não pode ser intrínseca, tem de ser extrínseca.
Ora, sendo assim, há apenas três possibilidades de relação. A primeira é uma relação pela negativa, isto é, a relação que nega a relação, ignorando a realidade humana a outra realidade. A segunda é uma relação em que a realidade humana ama a outra realidade, isto é, em que opera no sentido do seu bem possível. A terceira é uma relação em que a realidade humana se apossa da outra realidade, sem cuidado pelo bem próprio dessa realidade.
São estes os três modos possíveis e reais – ainda contemporâneos – de relação entre o ser humano e a restante realidade. Estes mesmos modos podem ser alargados a toda a realidade que transcende qualquer ser humano considerado individualmente, constituindo o modo padrão típico de relacionalidade entre o ser humano individual e o restante da realidade sua coeva.
Ora, toda esta relacionalidade, relação possível, e toda a relação efectivada nunca dispensam mediação. A ausência de mediação seria o que tecnicamente se define como magia. E não há magia (salvo precisamente nos mitos). As mediações são exactamente constituídas pelo trabalho e pela técnica a ele associada.
Podemos, assim, perceber que toda a inserção do ser humano no mundo, entendido quer do ponto de vista material quer do ponto de vista lógico – segundo o «logos» – é sempre fruto do trabalho e da técnica, depende sempre do trabalho e da técnica.
Assim sendo, a relação do ser humano com a «ecologia» é muito mais profunda do que comummente se pensa, pois todo o trabalho humano tem implicação, imediata ou mediata, sobre o todo em que se situa e de que faz parte. E tal sucede realmente quer o ser humano o perceba quer não.
Como a relação é necessariamente recíproca, o que o trabalho humano modifica na realidade envolvente faz com que essa realidade com que passa a relacionar-se seja diferente. Tal diferença condiciona de forma diferente tal relação, modificando a condição de relacionamento com o trabalho possível.
Assim, se, através do trabalho humano, se eliminar um certo recurso de que tal trabalho, precisamente, necessitava para ser possível, tal modificação, por si só, impede que tal trabalho possa continuar a existir. Este exemplo é paradigmático do que pode suceder e sucede, de facto, na relação entre o trabalho exercido e isso em que se exerce, a realidade envolvente, quando o trabalho não respeita a possibilidade da relação.
Podemos, deste modo, perceber que todo o trabalho exercido pelo ser humano – e aqui «trabalho» significa a parte poiética da acção humana, que existe sempre – tem repercussão sobre a realidade envolvente, isso que habitualmente designamos como «ambiente», forma menor de referirmos a realidade como um todo, pois toda ela é afectada, mesmo que não haja de tal consciência.
A cultura coincide com o produto total do trabalho humano, em seu sentido mais lato. Podemos, portanto, compreender que a cultura é o correlativo substancial humano do que transcende a humanidade. O trabalho constitui a cultura na relação com o que não é propriamente humano co-presente à humanidade, desde que há humanidade e apenas desde que há humanidade. A ecologia é, assim, a relação entre a humanidade em seu mesmo acto cultural universal e tudo o que não é propriamente humano.
Não é apenas uma ciência. Não é apenas uma forma de estar com a natureza correctamente. É o único modo de o ser humano se relacionar activamente com o que transcende a humanidade: o habitar a casa universal, mas com a possibilidade de a modificar, de a construir, de a melhorar, de a piorar, de a destruir, sempre na forma da relação.
A relação entre o ser humano como entidade que é na forma de trabalho e o restante da realidade é, assim, sempre uma relação dramática, podendo ser uma relação trágica, não apenas porque o ser humano, através do trabalho, pode aniquilar parte da realidade envolvente, mas também porque a realidade, negativamente modificada pelo trabalho humano, pode aniquilar os seres humanos, quer em sentido particular de aniquilar algum ou alguns, mas não todos, quer no sentido de poder aniquilar todos.
Sendo assim, o modo de ser do trabalho humano tem sobre si uma responsabilidade verdadeiramente cósmica, cosmológica e cosmogeradora. O seu não cumprimento implica imediatamente a diminuição da riqueza cósmica e do que tal riqueza permite em termos de futura relação: no limite, o trabalho humano pode ser o factor da destruição da própria humanidade. Lembre-se do terror em que se viveu nos anos cinquenta e sessenta do século XX em virtude da ameaça de destruição nuclear. Tal destruição seria fruto do labor humano, não de uma qualquer divindade ou realidade natural.
Por outro lado, é através do trabalho humano que é possível uma relação ecológica que respeite o melhor possível a possibilidade de continuidade de relação entre os seres humanos e a restante realidade. Como trabalho possível, está, como simbolicamente se costuma dizer, «nas nossas mãos».
Setembro de 2017

Américo Pereira