Pecado original

Pecado original

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Para a Europa e para a Cáritas: Populorum Progressio, cinquenta anos depois, mais actual do que nunca


No dia 26 de Março de 1967, o Papa Paulo VI apresentou ao mundo a Encíclica Populorum Progressio onde propôs uma nova ordem mundial. O que tem isso a ver com a Europa de hoje, com a construção europeia? Muito! Paulo VI apresentou ao mundo os valores orientadores de uma nova ordem mundial, onde o desenvolvimento passou a ser o novo nome para a paz. Nesta encíclica, Paulo VI pede às nações mais ricas que assumam a obrigação moral para com os mais pobres, contribuindo para o desenvolvimento e trabalhando para o bem comum. Na Populorum Progressio Paulo VI faz um apelo à solidariedade e colaboração - entre as pessoas e entre as nações - e delineia o que deverá ser a cooperação internacional, sublinhando que o desenvolvimento “não se pode limitar ao crescimento económico. Para ser autêntico, deve promover o desenvolvimento de cada homem e do homem todo” (Populorum Progressio, 14). Ao colocar a pessoa, em comunhão com as outras pessoas, no centro do desenvolvimento, Paulo VI introduziu o conceito de desenvolvimento humano integral, onde as íntimas ligações multidimensionais entre o bem-estar social e emocional de pessoas, famílias e comunidades, com a dimensão económica, são fundamentais.
Durante estas décadas a Populorum Progressio tem sido fonte de inspiração para muitas das diversas forças que, no diálogo e no confronto de ideias (e não de armas), foram e continuam a ser motores da construção da União Europeia que conhecemos hoje. Muitos dos então novos conceitos introduzidos pela Populorum Progressio, como por exemplo o desenvolvimento humano integral, fazem hoje parte do vocabulário europeu e do seu património.
A Cáritas Europa ainda hoje usa estes conceitos para defender as pessoas desfavorecidas e fazer chegar as suas vozes às instituições europeias. Ao fazer isto, usamos, ao mesmo tempo, a linguagem da igreja e a linguagem da Europa.
Ao mesmo tempo, estou convencido de que o papa Paulo VI, ao ler os sinais dos tempos, se inspirou no Tratado de Roma, assinado em 25 de Março de 1957, dez anos e um dia antes da promulgação da Populorum Progressio. Coincidência? Penso que Paulo VI o fez deliberadamente. O projecto europeu começou como um projecto de “paz” e de “solidariedade”, dois conceitos centrais da Populorum Progressio.
Paz: Depois de centenas de anos de guerras em solo europeu, vários políticos cristãos de diferentes nacionalidades, hoje chamados de “Pais Fundadores da União Europeia”, decidiram lançar as bases de uma paz duradoura. A estratégia era criar interdependência em diferentes áreas políticas (começando com o carvão, o aço e o comércio), em que a cooperação fosse a única forma de ganhar. A paz no território da UE dura agora há mais de setenta anos.
Solidariedade: os Tratados de Roma instituíram imediatamente o Fundo Social Europeu, primeira grande ferramenta de solidariedade para ajudar as pessoas necessitadas, naquela época os trabalhadores das indústrias do carvão e do aço que perderam o seu emprego e tinham que encontrar um novo. Mais tarde, outras políticas e fundos europeus reforçaram o conceito de solidariedade: o FEADER, a solidariedade com os agricultores e a população rural; o FEDER, solidariedade com as regiões mais pobres da Europa; e tantos outros fundos e programas nos últimos sessenta anos.
Estou convencido de que, sem o projecto europeu, sem a solidariedade europeia, haverá mais desigualdades entre regiões e países, os pobres serão mais pobres e enfrentaremos muitos mais problemas estruturais. Apesar de todas as críticas justificadas que podemos fazer hoje aos nossos governos e às instituições europeias, relativamente à necessidade de uma melhor implementação e protecção dos direitos humanos e sociais, a Europa é, no entanto, um lugar muito melhor hoje do que há sessenta anos. E, apesar de todas as incoerências e erros, reconheceremos que o mundo também é um lugar melhor devido ao papel da Europa na arena internacional nestas últimas décadas. E a Europa e o mundo são lugares melhores precisamente por causa dos sucessos do projecto europeu.
Ao ler como o Senhor molda a história da humanidade, observando o desenvolvimento promissor do projecto europeu, com a encíclica Populorum Progressio, o Papa Paulo VI quis lembrar (também) aos europeus os valores mais elevados que devem nortear a construção deste projecto.
Sim, os pobres precisam da Europa, definitivamente. E não se trata apenas de uma questão de dinheiro, mas de uma abordagem integral para o desenvolvimento humano. O que ouvimos ultimamente como “primeiro a minha região”, “primeiro o meu país” ou imaginemos que alguém diria “em primeiro lugar a minha Cáritas”, é contra o princípio do bem comum consagrado pelo beato Paulo VI.
Numa releitura desta carta encíclica, constatamos a sua actualidade. Torna-se necessário reforçar estes valores no nosso trabalho como Cáritas, promovê-los na relação com os governos locais, regionais, nacionais e as instituições europeias. Na Cáritas, o nosso encontro directo com as pessoas em situação de pobreza e os ensinamentos do Ensino Social da Igreja são os sólidos alicerces do nosso “caminho político da caridade” (Caritas in Veritate, 7), para dar voz à causas dos pobres (Evangelii Gauidum, 198).
Baseando-se no Ensino Social da Igreja Católica, o papa Francisco pediu em três momentos diferentes a continuação do desenvolvimento do projecto europeu: no seu discurso ao Conselho da Europa (2014), no discurso ao Parlamento Europeu (2014) e no discurso na cerimónia de entrega do prémio Carlos Magno (2016). Fundamentada na tradição e nos ensinamentos da Igreja orientados para o desenvolvimento integral das nações e das pessoas, a visão do papa é apoiada pela actuação da Cáritas no seu dia a dia. Cáritas que claramente está empenhada na construção da Europa.
A Europa é um projecto imperfeito, mas cuja construção está em curso. Sem unidade na diversidade, sem diálogo e sem uma visão do todo, a Europa desmoronar-se-á. Precisamos da Europa. Uma Europa construída no espírito da Populorum Progressio.

Jorge Nuno Mayer
Secretário Geral da Cáritas Europa

Abril 2017

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Um novo Pentecostes

O Concílio Vaticano II convida-nos a imitar a Virgem Maria “que brilha como modelo de virtudes sobre toda a família dos eleitos” (LG 65). A esta luz proponho-me fazer uma brevíssima reflexão sobre dois dos apelos que retiro deste convite: o primeiro é o apelo à santidade e o segundo o apelo à presença e atuação, segundo as virtudes, dos cristãos no mundo.
Crescer em santidade, atrevo-me a dizer, é o imperativo mais urgente e mais radical de todos os cristãos. Se queremos renovar a Igreja e evangelizar o mundo parece-me que temos que começar por aqui. Mas, não se pense que o projeto de santidade possa, alguma vez, induzir à alienação das responsabilidades socias ou favorecer um individualismo narcísico. Pelo contrário, a santidade autêntica, moldada à imagem de Maria, desagua necessariamente numa profunda vivência comunitária da fé, da esperança e do amor, que nos leva a assumir e partilhar responsabilidades, dentro e fora da Igreja e nos projeta para estar ao serviço dos outros.
Esta afirmação remete imediatamente para o segundo apelo ou seja a presença e atuação virtuosa dos cristãos no mundo. Em 1987, na encíclica Redemptoris Mater escreveu São João Paulo II: “Em Caná da Galileia, torna-se patente só um aspeto concreto da inteligência humana, pequeno aparentemente e de pouca importância (Não têm vinho). Mas é algo que tem um valor simbólico: aquele ir ao encontro das necessidades do homem significa, ao mesmo tempo, introduzi-las no âmbito do poder salvífico de Cristo” (RM 21).
Se pretendemos evangelizar o mundo para o modificar e torná-lo mais humano, temos de saber estar nele, como fermento, no interior das situações que tecem a vida dos homens intervindo na complexidade das relações humanas, sejam elas de cariz social, cultural, económica ou política.
O ano que iniciámos convida-nos exatamente a fixar os olhos na Virgem Santa Maria à maneira de quem espera um novo Pentecostes, pois foi pela sua mediação que Cristo encarnou para nos resgatar da velha escravidão, outorgando-nos a nova condição de filhos de Deus (cf. Gal. 4,4-7).

Aceitemos pois o convite a pôr a esperança na Mãe de Jesus, poderosa intercessora junto do Senhor, sempre solícita em obter-nos a graça de um “vinho novo” capaz de alegrar o convívio da nossa festa da vida (cf. Jo. 2,1-12).
Francisco Vaz
Fevereiro, 2017

Fátima altar do mundo

Em 1917, ano em que aconteceram as aparições em Fátima, a humanidade encontrava-se no auge de uma guerra que, embora centrada na Europa, semeava destruição um pouco por todo o mundo. Na Rússia, iniciava-se a revolução bolchevique que aspirava à instauração duma sociedade sem classes. Se a revolução soviética originou uma transformação violenta das estruturas socioeconómicas violentando as pessoas, as aparições de Fátima, embora contendo uma mensagem clara de rejeição da injustiça não suscitaram a transformação de estruturas, apesar do invulgar exemplo de dignidade perante a injustiça, dado pelos três pastorinhos.
De facto vivia-se um ambiente social, político e religioso resultante de acontecimentos históricos com alguns séculos. O protestantismo no século XVI, o racionalismo do século XVIII, o agnosticismo do século XIX e o consequente desenvolvimento do espírito racionalista e materialista, que atinge o seu clímax em 1848 com o manifesto comunista, vinham anunciando a morte de Deus colocando o homem como medida de todas as coisas. “Com a eliminação de Deus das consciências é o próprio homem que entra em perigo. No final do século está em jogo e risco não só a existência de Deus mas também a dignidade do homem” (O. G. Cardedal).
A mensagem de Fátima centra-se no chamamento à conversão e à penitência como Jesus Cristo anunciou. O que Maria comunicou aos pastorinhos tem fundamento bíblico e teológico: o amor, a misericórdia, a salvação, o pecado, o céu, o inferno, a Eucaristia, a oração, a Igreja, o lugar do Papa e o seu magistério. Nas recentes palavras de D. António Marto “a mensagem de Nossa Senhora é um apelo para nos abrirmos a outra dimensão da história, alimentada por outra Presença, sustentada por outra Força, conduzida por outra Luz, orientado para outra Meta, já agora misteriosa e silenciosamente presentes e operantes na cadeia das gerações que guardam as Promessas do Senhor e as transmitem de geração em geração.”
A mensagem de Fátima é tornada universal pela primeira vez com a visita pastoral do Papa Paulo VI, no cinquentenário das aparições, em 1967. Vale a pena revisitar a sua homilia na Eucaristia desse dia em particular quando explicita as razões da sua peregrinação: “A primeira intenção é a Igreja: a Igreja una, santa, católica e apostólica. Queremos rezar, como dissemos, pela sua paz interior. O concílio Ecuménico despertou muitas energias no seio da Igreja, abriu perspectivas mais largas no campo da sua doutrina, chamou todos os seus filhos a uma consciência mais clara, a uma colaboração mais íntima, a um apostolado mais activo. […] E, assim, passamos à segunda intenção deste Nosso peregrinar, intenção que enche a Nossa alma: o mundo, a paz do mundo”.
Sendo a mensagem de Fátima no seu âmago um grito pela paz não deixa de ser interessante constatar que ainda no final desse ano de 1967, mais concretamente no dia 8 de Dezembro, Paulo VI dê a conhecer ao mundo a primeira mensagem do Dia Mundial da Paz, criando aquele que viria a ser o Dia Mundial da Paz comemorado no primeiro dia de Janeiro de cada ano: “Dirigimo-nos a todos os homens de boa vontade, para os exortar a celebrar o «Dia da Paz», em todo o mundo, no primeiro dia do ano civil, 1 de Janeiro de 1968. Desejaríamos que depois, cada ano, esta celebração se viesse a repetir, como augúrio e promessa, no início do calendário que mede e traça o caminho da vida humana no tempo que seja a Paz, com o seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o processar-se da história no futuro”.
Posteriormente, as visitas apostólicas, não só do Papa João Paulo II realizadas em 1982, 1991 e 2000, e a sua íntima ligação a Fátima, bem como a visita do Papa Bento XVI em 2010, abrem novos horizontes ao culto mariano.

Ao aceitar presidir este ano às celebrações religiosas do centenário das aparições, o Papa Francisco reafirma a importância de Fátima como altar do mundo que se ergue “como palavra profética de denúncia do mal e compromisso com o bem, na promoção da justiça e da paz, na valorização e respeito pela dignidade de cada ser humano.” (CEP, Carta pastoral no centenário das aparições de Nossa Senhora de Fátima, Dez. 2016).
Francisco Vaz
Março, 2017

Nuno Álvares Pereira – um contexto de misericórdia

As cortes de Coimbra e a batalha de Aljubarrota, em 1385, foram acontecimentos relevantes e decisivos da história de Portugal, que, resolvendo uma das maiores crises nacionais, estabeleceram e firmaram para sempre a nossa independência. Se já nas Cortes de Coimbra foi decisiva - juntamente com a de João das Regras, embora noutro plano - a ação desenvolvida por Nuno Álvares, mais decisiva ainda foi a sua ação na batalha de Aljubarrota. Não fora a sua determinação contra o parecer dos conselheiros do Reino e as próprias hesitações de D. João I, Aljubarrota não se teria verificado e os factos históricos subsequentes de consequências tão extensas e felizes para Portugal, também não.
Nuno Álvares Pereira, sendo uma figura ímpar da nossa história, foi de uma vida interior riquíssima. Ao enfrentar a guerra, estava consciente da sua justiça e honra, na defesa da terra e de um povo que, acreditava, tinha o direito de gerir o seu destino.
Como Condestável, comandante do exército, enérgico e de convicções firmes, castigava aqueles que instigavam e participavam em desordens. Contudo, não castigava com destempero, mas com brandura, de modo que os seus homens tinham dele mais reverência que temor. Usava de fraternidade na relação com os soldados no respeito pela sua dignidade humana, independentemente da função. Sabia repartir com generosidade, sem qualquer cobiça, o que resultasse das incursões e fosse tomado no final das pelejas. Usava da misericórdia mesmo para com aqueles que combatia, uma vez que não odiava os adversários, nem permitia que a paixão dominasse o ardor da luta. Por isso cuidava dos prisioneiros e feridos, não deixava que destruíssem aldeias ou campos cultivados, amparava as mulheres, crianças e pobres e, em momento de carência alimentar, chegou a custear e distribuir trigo pelos castelhanos.
De facto, na base de todas as suas atitudes estava uma fé profunda. Todos os dias, mesmo em tempo de guerra, cumpria os seus deveres religiosos. Como observou Oliveira Martins no seu livro “A vida de Nun’Álvares” : A sua fé em Deus era a chama em que ardia a sua dedicação patriótica e a sua energia militar. A religião era a raiz: a virtude, a coragem, o civismo, os ramos da árvore da sua vida, iniciada pela revolução mística da Cavalaria. Salvando Portugal, levantando um trono ao Mestre de Avis, cumpria a empresa que lhe fora marcada; mas essa empresa, transcendentalizando-se, importava a própria exaltação da sua alma no seio de Deus amado.
Vencidas as batalhas da independência e assinado o tratado de paz com Castela, em 31 de Outubro de 1411, Nuno Álvares começou a orientar a sua vida para o convento. Conforme se conclui da leitura quer de Fernão Lopes quer do autor anónimo das Crónicas do Condestável, tudo para ele se revestia de significado religioso porque Deus era sempre o ponto de referência dos seus atos. Por isso, em Nuno Álvares, o combatente e o monge, o cavaleiro e o professo, são apenas as duas faces de uma mesma moeda. Esta unidade interior, que nenhuma vicissitude jamais desfez, antes acentuou, refere-a Fernão Lopes ao observar que Nuno Álvares, sem desfalecimento de qualquer ordem, propôs em sua alma haver Deus por guiador principal dos seus feitos.
 Assim, depois de repartir terras em favor dos netos, perdoar dívidas, doar todos os bens a cavaleiros e escudeiros pobres, entrou no Convento do Carmo como simples cristão em busca de recolhimento. Admitido a 15 de Agosto de 1423, 38 anos depois de Aljubarrota, passou a ser conhecido por Nuno de Santa Maria, levando uma vida extremamente simples e modesta. Por obediência, guardou a tença que lhe concedeu o príncipe D. Duarte, mas essa mesma a repartia quotidianamente em esmolas. Foi esta atitude radical de alguém que fora o fidalgo mais poderoso do país que conquistou o coração do povo.
Se há homens que se tornam notáveis, porque realizaram uma grande obra ou porque deram das suas virtudes grandes exemplos, Nuno Álvares Pereira foi-o simultaneamente por uma e outra razão. Oliveira Martins descreve-o como aquele que  remiu Portugal do cativeiro castelhano iminente, abstraindo a Nação dos limbos obscuros da política pessoal dos reis, para assentar sobre os alicerces firmes da vontade popular: aclamando-a num voto de ação heróica, e deixando-a, de pé e armada, pronta para a conquista do seu lugar épico na história da civilização moderna.
A experiência de fé passa necessariamente por um itinerário espiritual. Este tem, na raiz de toda espiritualidade, uma experiência datada e concreta, vivida por pessoas em diferentes contextos. Nas palavras consagradas a S. Nuno aquando da sua canonização em Abril de 2009, Bento XVI sublinhou a unidade de vida e a integridade espiritual do novo santo, mesmo em contextos aparentemente incompatíveis com o estado de santidade, sublinhando que a vida do Condestável é uma prova de que, em qualquer situação, mesmo de carácter militar e bélica, é possível atuar e realizar os valores e princípios da vida cristã. Neste contexto, o testemunho de vida de Nuno Álvares Pereira, pautada pelos princípios evangélicos, constitui um exemplo que pode ajudar-nos a refletir e a perceber como poderemos ser parte ativa na construção de uma sociedade mais justa, mais fraterna e mais misericordiosa.

Francisco Vaz
 Julho, 2016

Bibliografia:

A.   Alexandre Reis Rodrigues, Nun’Álvares, Condestável e Santo, Aletheia editores, Lisboa, 2009
B.    Carlos Moreira Azevedo, São Nuno de Santa Maria, Um Santo Condestável e Carmelita, in Azimute, Revista Militar de Infantaria, nr 187 – Agosto de 2009, Mafra

C.    Jaime Nogueira Pinto, Nuno Álvares Pereira, A esfera dos livros, Lisboa, 2009

As sete obras de misericórdia de Caravaggio

 35Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, 36estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.”
Mateus 25, 35-36


O retábulo “As sete Obras de Misericórdia” de Caravaggio é uma pintura a óleo, com 390 cmx260 cm, e encontra-se na Igreja de Pio Monte della Misericordia, em Nápoles, Itália. O trabalho foi originalmente planeado para ser efetuado em sete painéis mas, no final, Caravaggio optou por combinar todas as sete misericórdias num só quadro.
Nesta obra é perceptível o desespero no rosto e na postura de certas personagens. A disposição diagonal dos elementos da tela sugere uma composição assimétrica com um acentuado contraste entre o claro e o escuro, com intensos focos de luz sobre os detalhes do rosto e do corpo.
As obras de misericórdia que podemos identificar nesta pintura são as seguintes:
-       Dar de comer a quem tem fome e visitar os presos
À direita está uma mulher amamentando um homem o que representa dois atos numa mesma cena: alimentando os famintos e visitando os prisioneiros. A cena refere-se a uma antiga história romana, na qual uma mulher, Pero, amamenta o seu pai, Simon, que foi condenado a morrer de fome. Ela tinha licença para visitá-lo na prisão, mas não para levar-lhe comida. Como acabara de dar à luz, numa atitude de dedicação sublime, amamenta o pai faminto. Os guardas da prisão descobrem, levam o facto ao conhecimento das autoridades, que, sensibilizadas com essa devoção filial, decidem libertar o prisioneiro.
-       Dar de beber a quem tem sede
À esquerda, acima do peregrino com um bastão nas mãos, Sansão bebe água de um recipiente de osso. Essa alusão a Sansão remete para o episódio da Bíblia em que ele estava em perigo de morrer de sede e Deus deu-lhe água numa vasilha de osso.

-       Vestir os nus, visitar e atender os doentes
O mendigo, nu e aleijado, não anda e arrasta-se pelo chão. São Martinho com um traje cor de vinho cumprimenta-o e dá-lhe atenção, dividindo o seu manto em duas partes para agasalhar o mendigo.
-       Dar pousada aos peregrinos

Um peregrino, que se pode distinguir pela carapaça e pelo bastão, é a terceira figura à esquerda. Busca abrigo conversando com o dono de um albergue, que já aponta o dedo indicador mostrando o caminho a seguir para a pousada.
-       Enterrar os mortos
No segundo plano, à direita, dois homens carregam um homem morto. Podem ver-se os seus pés.

Esta obra só mais tarde e por razões teológicas se reuniria às seis referidas por São Mateus. Alguns autores defendem que o seu sentido pode ser encontrado no mesmo texto, um pouco mais à frente, quando Maria, irmã de Lázaro, derramou sobre a cabeça de Cristo um perfume precioso. O caso foi motivo de indignação por parte dos discípulos, que pensavam vender o perfume e fazer reverter o dinheiro a favor dos pobres, ao que Jesus respondeu: «Derramando este perfume sobre o meu corpo, ela preparou a minha sepultura» (Mt 26, 12). Outros há que, retomando fontes da igreja primitiva, como Lactâncio, e medievais, como Johannis Beleth, filiam esta obra no Livro de Tobias 1, 17: «Durante o reinado de Salmanasar, eu dava muitas esmolas aos meus irmãos, fornecendo pão aos esfomeados e vestindo os nus, e se encontrava morto alguém da minha linhagem, atirado para junto dos muros de Nínive, dava-lhe sepultura». Esta parte do Livro de Tobias é tanto mais significativa por quanto ainda permite intuir outras duas, pois Tobias, representa o cuidado com os doentes, ao ajudar a curar a cegueira do pai, e o anjo Rafael,  caracteriza-se pela sua proximidade aos viajantes e peregrinos.

Francisco Vaz 
Março 2016

Verdade e justiça como pressupostos do perdão nas parábolas da misericórdia

«Então, Pedro aproximou-se e perguntou-lhe: Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes? Jesus respondeu: Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete» (Mt 18, 21-22).
Jesus proclamou sempre o perdão de Deus e simultaneamente indicou a exigência do perdão recíproco como condição para o obter; Aliás, na oração que nos deixou ensinou a rezar: «Perdoa as nossas ofensas, como nós perdoámos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12). Isto quer dizer que Jesus põe nas nossas mãos a medida com que seremos julgados por Deus. De facto, a parábola do servo insensível, que nos é relatada em Mateus 18, 23-34, punido por causa da sua dureza de coração, manifestada contra um seu semelhante, ensina-nos que aqueles que não estão dispostos a perdoar se excluem a si próprios, por isso mesmo, do perdão divino: «Assim procederá convosco meu Pai celestial, se cada um de vós não perdoar do fundo do coração a seu irmão» (Mt, 18, 35).
Diz-nos o Papa João Paulo II, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1997 que o perdão, enquanto ato de amor, tem exigências intrínsecas; a primeira dessas exigências é a verdade, sendo que a verdade absoluta nos é revelada no Filho encarnado. Ora, isto implica imediatamente que todos os homens são chamados a viver na verdade e, por isso mesmo, o perdão, longe de excluir a busca da verdade, exige-a. Por essa razão, a corrupção, a manipulação ideológica e, em geral, a mentira, são, na sua essência, contrárias à verdade, agridem os fundamentos da convivência e minam a possibilidade de relações sociais pacíficas.
Outro pressuposto essencial do perdão é a justiça, que tem o seu critério último no desígnio de amor e de misericórdia que Deus tem sobre a humanidade. O perdão não elimina nem diminui a exigência da reparação, que é própria da justiça, mas pretende reintegrar quer as pessoas e os grupos na sociedade, quer os Estados na comunidade das nações. Assim sendo, nenhuma punição pode mortificar a dignidade inalienável de quem praticou o mal, de modo que a porta para o arrependimento e a reabilitação deve ficar sempre aberta.
 O amor divino é, assim, o fundamento da reconciliação a que somos chamados: «É ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É ele quem resgata a tua vida do túmulo, e te enche de graça e de ternura. […] Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas.» (Sal. 103-102, 3-4, 10).
De facto, nunca foi o pecado que escandalizou Jesus Cristo. Muito pelo contrário. Teve sempre um coração aberto para com os pecadores e arrependidos. Mas nunca o teve para os fariseus hipócritas, que se gabavam de não ter pecados, ao contrário dos publicanos arrependidos (Lc 18, 9-14).

A grande alegria do perdão, oferecido e aceite, cura feridas de outro modo insanáveis, restabelece o inter-relacionamento e radica-o no amor inexaurível de Deus.
Francisco Vaz
Março 2016

Fácil violência, difícil misericórdia

Nas capas dos cadernos que, há muito tempo, recebi quando iniciei a Escola Preparatória, encontrava-se inscrita a seguinte máxima: «a violência é o argumento do incompetente».
Várias dezenas de anos de estudo da guerra demonstram-me a radical verdade de tal inscrição.
 A violência é sempre manifestação de incompetência, de uma incompetência que promana de algo muito profundo na ontologia humana, que é propriamente a negação do que há de activo na ontologia humana e que constitui, literalmente, a impotência ética, a impotência da acção no sentido do bem.
Se fosse possível a magia de tornar a prosopopaica humanidade em real pessoa, poder-se-ia dizer que esta mesma humanidade sempre soube de tal, ou, pelo menos, sempre desconfiou de tal. Esta noção de impotência ética – que é onto-antropológica, pois encontra-se na própria matriz activa do ser humano, na original fonte de todo o seu ser como acto próprio – é isso que sempre surge nos mitos cosmogónicos e cosmológicos, quando, precisamente, a cosmogonia se revela impotente para o bem, quando a cosmologia se torna numa qualquer variante de uma «caologia» de uma «cacologia»: quando o mal surge. E surge sempre.
É assim em todos os mitos a que acedi. O mal é sempre da ordem da impotência. Quando bem disfarçado, parece ser da ordem da potência, mas, olhado mais atentamente, trata-se sempre de uma potência relativamente menor, logo, na menorização que é, de uma impotência.
É a impotência do Gilgamesh, que pensa que quer a vida eterna, mas que a não agarra quando a tem na mão, literalmente. A impotência do Satã que, esperto, questiona, junto de Deus, a bondade de Job; a impotência da mulher e dos falsos amigos de Job, bons para acefalamente criticar o que não compreendem, maus para amar o que necessita de amor. A impotência de Aquiles perante o desejo de vilipendiar o seu contra-par, Heitor, vileza que recebe como prémio a morte entrada pelo único poro possível, com a divina pontaria que demonstra o que é a verdadeira potência.
Mas é também a impotência de homens e deuses perante a grandeza humana de Édipo, pelas Erínias guardado no divino santuário da ordem do mundo. Humana potência indefectível do errante e sofredor Édipo, cujos pés padecem por ancestrais impotências de deuses apenas potentes quando metamorfoseados em divinas bestas violadoras de meninas.
A impotência de Creonte perante a avassaladora potência de Antígona, fiel seguidora dos pés de seu pai, sem medo de homens, amando a ordem e, nela e com ela, os irmãos, que, na violência da desordem, um a outro se mataram.
Por fim, a impotência do diabo perante o senhorio da vontade de Jesus, manifestando, na oposição do «não» à tentação de poder dos impotentes, o modelo do que será a vitória sobre a impotência das impotências que é a morte.
E não nos enganemos: esta morte sobre que Cristo triunfa não é a «irmã Morte», de Francisco de Assis, mas a morte como aniquilação. Esta morte não tem irmãos ou relação qualquer. É o absoluto da impotência e chama-se «nada».
Potência absoluta, impotência absoluta: Deus e o nada.
Voltemos à máxima inscrita no velho caderno. Deus, que é exactamente omnipotente – percebe-se que como bem, para o bem – é, assim, esse que não usa violência. A violência é a marca do impotente, do incompetente. É porque é incapaz de criar que o impotente é violento: no ilusório modo perverso de o acto do violento ser, nada parece ser mais próximo do criar do que o destruir; ambos parecem demonstrar capacidade infinita de poder. É o que a imagem do contraste entre o «sete» divino da perfeição e o «seis» diabólico da «quase-perfeição», da paródia da perfeição, simboliza.
No entanto, de facto, toda a criação, porque toda ela introduz um absoluto de novidade no ser – irredutível a tudo o que antecedia –, é sempre manifestação de infinito poder, tal é a «energia», o acto necessário para «arrancar» o novo ao “nada” de si próprio que “substitui” (sim, a expressão é mesmo difícil, pois estamos no limiar do pensável).
Mas a energia, o acto necessário para destruir seja o que for – dado que não é possível aniquilá-lo, «nadificá-lo» – é sempre finita, logo, infinitamente menor.
Se a criação é própria dos «poietas», dos poetas do ser – como análogos de Deus, poeta infinito –, a violência é própria das bestas, dessas em que se tornam os seres humanos quando, em vez de introduzir bem no real, neste destroem bem ou impedem bem de surgir. É esta a definição do pecado, assim sinónimo de violência. É isto que somos, que eu sou quando peco: violento, impotente, incompetente.
Quanto aos que defendem algo como a «violência criadora» ou a «destruição criadora», conviria pensar no que é que há de criador em destruir um bem? Não está em causa o que pensam que é um bem, o que é subjectivo, mas algo que é ontologicamente um bem, como, por exemplo, o ser dos próprios. Ou será que, como quando as incómodas excepções ameaçam a validade dos argumentos, a eles, aos próprios, não se aplica o “conceito”?
É violência todo o acto que atenta contra um bem concreto ou possível de alguém (por extensão, de algo). Deste ponto de vista – que nos ajuda a perceber melhor e de forma realista o que em Francisco de Assis parece ser um traço puramente afectivo –, toda a nossa existência se funda em actos de violência, de que, aliás, não nos podemos, em absoluto, alienar. Biologicamente, vivemos da violência que necessariamente exercemos, como seres heterotróficos que somos, sobre outros seres.
A resposta radical extrema residiria na negação desta condição, pela nossa mesma morte. Mas esta não é também, nestas condições, uma violência? Se não é, que estamos ainda a fazer vivos?
Na realidade, estamos condicionados a viver – é esta a condição mundana, não há outra – entre a violência da negação do nosso próprio ser e a violência que temos de exercer para podermos continuar a ser. É esta condição que a expulsão do paraíso significa. No paraíso, não há violência, pois nada é destruído. A condição extra-paradisíaca significa que a vida sempre se mantém sobre o sacrifício da vida.
Então, estamos condenados à violência? De um ponto de vista biológico parece que sim. E, se fossemos apenas seres biológicos, toda a nossa vida seria esta dinâmica de violência. Aparentemente.
Mas, na pura biologia, inconsciente de se ser o que se é, há violência?
Precisamente, não. Na ratio própria da natureza não humana, o que se encontra sempre é uma dinâmica e uma cinética de força, de forças, em que o que tem de ocorrer ocorre, sem que se possa falar de algo como «violência».
A violência não pode ser sinónimo de força ou, então, tudo o que é violência em termos humanos perde o seu sentido próprio, diluído na semelhança com o uso da força na natureza não humana.
Nada melhor para desculpabilizar um SS que assassinou ou ajudou a assassinar milhares de crianças em Treblinka ou em Auschwitz, por exemplo, do que comparar a força dos seus actos com a força dos actos de um macho de leão que mata instintivamente os filhotes da leoa que naturalmente se movimenta para possuir. Tão violento é o SS quanto o leão? Então, o SS tem o mesmo mérito ou demérito que o leão.
Não foi um mundo intelectualmente alicerçado sobre este tipo de relativização o mundo, este mundo que contemporaneamente se construiu e de que agora parece haver quem finalmente se dá conta de ser como é?
Não se tem vindo a optar globalmente – não é o mesmo que «universalmente», o que seria manifestamente falso – pela facilidade da humana violência, a todos os níveis, negligenciando a trabalhosa e difícil misericórdia? Que é isso de um mundo de competitividade sem violência e necessárias vítimas? Que é isso de um mundo de valor construído não sobre a realidade de bens económicos – temos ironicamente de repetir – «reais», mas sobre a irrealidade de outros valores, por exemplo, fazendo dinheiro a partir de dinheiro, isto é, insuflando vazios símbolos, que é o que o dinheiro é?
Como posso passar o tempo todo – o acto todo – a competir, pensando que o que chega em segundo lugar é o «primeiro dos últimos», sem com isso produzir violência? Como viver na crista da onda civilizacional às custas do trabalho escravo de outros sem com isto produzir violência?
Por fim, como resolver esta situação que se criou sem ser através de um aumento – aqui, sim, como sempre na guerra – exponencial de violência, situação, aliás, para a qual nos encaminhamos a loucos passos largos e de corrida como, muito bem, o Papa Francisco tem afirmado, quando diz que já se está a viver a Terceira Guerra Mundial?
Numa divina ironia, a única possível boa saída para a inércia de violência em que nos encontramos mergulhados é a misericórdia, essa mesmo que o Papa Francisco quis que fosse meditada.
Francisco tem razão: ou interiorizamos rapidamente a dinâmica e a cinética da misericórdia ou iremos conhecer o verdadeiro poder dos impotentes, dos incapazes de misericórdia (o que Francisco nitidamente não é).
Março de 2017

Américo Pereira