1. O
contexto da questão
Depois
de na 11ª legislatura terem sido apresentados quatro projectos de Lei e do
processo legislativo ter sido interrompido devido à dissolução da Assembleia da
República, voltaram a ser apresentados projectos nesta legislatura e o processo
teve o seu desfecho com a aprovação e publicação da lei que entrou em vigor a
16 de Agosto de 2012[1].
O testamento de vida ou testamento vital como muitas vezes é
designado, apresenta-se como uma barreira à obstinação terapêutica, resultado
do emprego por vezes abusivo da tecnologia que pode conduzir ao prolongamento
da vida e da agonia.
A importância da matéria
merecia maior discussão, mas foi notória a quase indiferença perante algumas iniciativas
que procuraram proporcionar oportunidades de debate. Ao contrário, em Itália,
onde uma lei idêntica foi aprovada sensivelmente na mesma altura, a discussão
foi acalorada, tendo-se envolvido nela não só a opinião publica como outras
forças vivas da sociedade. Parece-me
assim interessante a análise da argumentação subjacente ao conteúdo desta lei
italiana, e o confronto com os vários projectos discutidos e a lei que veio a
ser aprovada entre nós, efectuada pelo Juiz Conselheiro Pedro Vaz Patto no seu
artigo de 2012 publicado na revista Brotéria numero 174 e que servirá de base a
esta curta reflexão.
2.
A discussão em Itália
Em
favor da sua aprovação empenharam-se afincadamente os principais movimentos
católicos e os representantes da hierarquia eclesiástica. A Conferência
Episcopal Italiana, considerou-a “necessária e urgente” e nesse sentido também
se pronunciaram a Academia Pontifícia pela Vida. Foram lançados manifestos de 23
associações católicas e
um apelo ao Parlamento subscrito por intelectuais, universitários e
responsáveis da comunicação social dessa área, ambos em favor dos princípios
que vieram a ser consagrados nessa lei. Também nesse sentido se pronunciaram a
associação dos médicos católicos italianos e as associações Movimento per la
Vita, Forum delle Associazioni Famiglari e Scienza e Vita.
Os
princípios consagrados na lei, que justificam este apoio, resultam da rejeição
firme da eutanásia activa ou passiva e do respeito pela indisponibilidade da vida
humana, ao mesmo tempo que é rejeitada a exacerbação terapêutica (obstinação,
excesso ou encarniçamento terapêuticos). Como pano de fundo da
discussão, esteve o episódio da morte de Eluana Englaro[2]
e decisão análoga do Tribunal Federal alemão, que absolveu um advogado que
aconselhou a filha de uma doente em estado vegetativo persistente a fazer
cessar a sua alimentação e hidratação.
O
campo dos adversários da lei, também se moveu com grande empenho tendo por base
a crítica à irrelevância da vontade não actual do subscritor de uma declaração
antecipada de tratamento no sentido da rejeição de tratamentos necessários à
salvaguarda da vida. Considera-se que tal irrelevância é contrária ao
necessário respeito pela autonomia individual. Esta crítica encontrou grande
eco na imprensa laica e anunciaram-se recursos de inconstitucionalidade e
propostas de referendo de iniciativa popular tendente à revogação da lei.
Do conteúdo da lei, há a destacar os
seguintes princípios:
· Rejeição firme da eutanásia passiva ou
activa e respeito pela indisponibilidade da vida humana;
· Rejeição da exacerbação terapêutica
(obstinação, excesso ou encarniçamento terapêutico);
· Princípio do consentimento informado
actual e consciente como condição de um tratamento;
· Princípio da aliança terapêutica entre
médico e doente;
· Princípio do carácter não vinculativo
da declaração antecipada de vontade;
· Princípio da relevância da declaração
quanto aos tratamentos úteis e proporcionais na perspectiva da salvaguarda da
vida.
· Não relevância da declaração de
rejeição de alimentação e hidratação, salvo se estas se tornarem ineficazes
face à capacidade de absorção do corpo.
· Garantia da assistência em vez do
abandono dos doentes em estado vegetativo persistente.
De entre os princípios enunciados, foi
o da irrelevância das declarações antecipadas no
que se refere a tratamentos úteis e proporcionais à salvaguarda da vida e à
rejeição da alimentação e hidratação artificiais, que motivou as maiores
críticas à lei.
3. A discussão em Portugal
Convém começar por
referir que, ao contrário do que aconteceu em Itália, em Portugal a matéria em
questão não suscitou grande debate, tendo sido notória a quase indiferença
perante iniciativas que procuraram proporcionar oportunidades de discussão.
Desta forma, a lei aprovada por unanimidade, resulta da discussão parlamentar e
da confluência dos quatro projectos apresentados pelo PS, PSD e BE.
Sumarizando
as posições dos partidos dir-se-ia que os projectos apresentados pelo PS continham normas que poderiam servir de
obstáculo à eutanásia mas não em termos absolutos e inequívocos. O reconhecimento
ao direito de objeção de consciência dos profissionais de saúde só se
compreende por não estar completamente afastada a hipótese de eutanásia por omissão.
Nos projectos do BE pretendia-se dar cobertura legal explícita à mentalidade subjacente
à legalização da eutanásia quando a vida perde qualidade. Reconhece-se que há
vidas indignas de ser vividas e sem valor. De modo especial desvaloriza-se a
vida dependente porque pode ser um fardo para os outros. Afirmava-se na
exposição de motivos de ambos os projectos que o “testamento vital” deve ir de
encontro à situação de muitas pessoas que «recusam
o prolongamento de uma vida sem mobilidade, sem autonomia, sem relação ou
comunicação com os outros, uma vida afastada dos padrões e critérios de
qualidade e dignidade pessoal pelos quais se conduziram toda a vida, uma vida
que recusariam prolongar se tivessem capacidade para fazer ouvir e respeitar a
sua vontade.» Pretendia-se, pois, dar cobertura legal explícita à mentalidade
subjacente à legalização da eutanásia quanto à desvalorização da vida quando
ela perde “qualidade”. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade
intrínseca e imperdível e passa a ser graduada de acordo com critérios de
“qualidade”. Reconhece-se que há vidas “indignas de ser vividas” e “sem valor”.
Os projectos do PSD eram os que se aproximavam mais dos princípios consagrados
na lei italiana, acentuando o princípio da autonomia do doente, mas com o
objectivo claro de evitar o excesso terapêutico.
Sem nos
determos em grandes detalhes passaremos a apresentar alguns dos princípios
consagrados na lei 25/2012.
Da
redacção da lei aprovada não consta, como constava do projecto apresentado pelo
PSD, a exclusão de doenças não terminais do âmbito de relevância das directivas
antecipadas de vontade. Tal permitiria excluir desse âmbito a vontade
(suicidária) de rejeição da vida em condições de mais ou menos grave limitação
ou deficiência (ou de suposta menor “qualidade de vida”). Mas impõe-se
reconhecer que, atendendo ao que resulta das referidas alíneas b) do artigo 2º
e b) do artigo 5º, não estamos, nesses casos, perante uma aceitação de uma
“morte natural”, mas da provocação de uma “morte não natural e evitável”.
Poderá, por isso, e por força destes dois preceitos, considerar-se que estas
situações estarão excluídas do âmbito das declarações antecipadas de vontade. O
princípio in dubio pro vitae está
consagrado no nº 4 do artigo 6º.[3]
O artigo
9º da consagra o direito à objecção de consciência, na linha do que faziam todos
os projectos apresentados.[4]
4. O
que está em causa
A análise da
discussão e debate em torno destas duas leis recentemente aprovadas, mormente a
italiana, suscitam-nos três notas que passaremos a expor de forma muito breve:
Autonomia e liberdade
A nossa época
vende-nos a ideia de uma «liberdade
individual obsessivamente arvorada como talismã redentor do género humano, uma
espécie de panaceia destinada a remediar todas as calamidades que afligem o
homem»[5]. No
entanto esta liberdade individual tão apregoada, quando não tem por farol o bem
comum, apenas converte o ser humano em escravo dos próprios caprichos e das
próprias apetências.
Contra a
sobrevalorização da autonomia que nunca é absoluta nem puramente individual
diz-nos Walter Osswald:
«Também é forçoso admitir que, na prática, não existe uma
autonomia total do indivíduo, sujeito a influências, pressões e coações,
mormente em questões relacionadas com a saúde. A excessiva atenção hoje dada à
autonomia individual é de raiz ideológica, provém do iluminismo, foi exacerbada
pelo anarquismo, mas uma antropologia filosófica moderna não lhe reconhece a
preponderância que tantos lhe atribuem.»[6]
Por outro lado,
segundo Sergio Bastianel a pergunta onde
está o teu irmão Abel?(Gn 4,9) «é a
pergunta sobre a relação. Suscita a consideração de uma realidade fundamental:
a vida moral pessoal é constitutivamente aberta, não é uma questão individual e
privada»[7]. A ligação ao outro é algo que está subjacente e presente na
origem da experiência moral enquanto tal, pelo que as decisões que tomamos
nunca podem ser tomadas de forma individual, mas no concreto histórico das suas
relações. A percepção ínsita da experiência de liberdade exige a
responsabilidade pela vida, pela liberdade e pelo bem do outro. Só assim a
humanidade tem condições de possibilidade. Nesse mesmo sentido se manifestou
Pio VII, afirmando que as pessoas não são donas, mas antes usufrutuárias da sua
própria vida.
A autonomia deve,
por isso ser entendida de uma forma responsável, tendo por fim o nosso
benefício e o dos outros. Não tendo a pessoa contribuído para a sua própria
existência, não pode considerar-se dona de um bem gratuito indispensável. Ou
seja a vida está antes da autonomia. O mesmo é dizer não há autonomia sem vida.
Nesta linha, o Código Penal refere «bens indispensáveis» e a Constituição
estatui que a vida humana é inviolável.
Dignidade humana
O direito a morrer
com dignidade é uma das premissas que estão na base do testamento vital. Nas
palavras de Pedro Vaz Patto «A vida é o
maior dos bens humanos e o primeiro dos direitos humano, o pressuposto de todos
os outros bens e de todos os outros direitos. Este é um dado objectivo»[8]. Ou seja, não é por se encontrar numa
situação de debilidade devida à idade, doença ou deficiência que a pessoa perde
dignidade, valor moral ou direitos. Pelo contrário, é nestas situações de
debilidade e incapacidade que mais se justifica o cuidado do outro e a tutela da ordem
jurídica. É nestes caso que se aplica de forma particularmente pertinente a
advertência evangélica sobre o amor ao mais pequeno dos meus irmãos. Ou como se
pode ler na nota publicada pelo Centro de Bioética da Universidade Católica
italiana del Sacro Cuore: «Se não formos
capazes de tutelar quem não é capaz de se auto-tutelar poremos fim à própria
ideia de democracia tal como as reconstruímos depois das violências
totalitárias»[9]
Por outro lado,
deixar morrer não é matar. Quando o prognóstico é extremamente mau e a sobrevida
provável muito curta, não constitui boa prática da medicina o chamado
encarniçamento terapêutico e aí sim desrespeita a dignidade humana. A pessoa
deve ser acompanhada com cuidados paliativos e compaixão até aos seus momentos
finais, sem ser submetida a instrumentação e tecnologias que só vão diminuir a
sua qualidade de vida e são, medicamente, fúteis.
Sentido e sua actualidade
Sabemos que é diferente o
respeito por uma vontade actual e esclarecida (que não suscita dúvidas
sobre o seu sentido autêntico) e o respeito por uma vontade hipotética, com
base em declarações prestadas anteriormente num contexto muito diferente do
actual (de forma necessariamente pouco esclarecida, precisamente por esse
contexto ser diferente do actual). Não se trata apenas de considerar a dúvida
sobre a informação a que possa ter tido acesso a pessoa quando formulou essa
declaração, ou sobre se a situação em que se encontra agora era, para ela,
nessa altura, previsível. Nem também a possibilidade de o estado dos
conhecimentos médicos se ter alterado desde então. É que subsiste sempre a
dúvida (independentemente do tempo decorrido e da possibilidade de revogação da
declaração) a respeito de saber se a pessoa não poderia mudar de opinião. Esta
aliás é uma questão de fundo. Será que posso remeter o sentido para o futuro ou
mesmo para o passado? Segundo Américo Pereira «...de nada servem as remissões, mesmo bem intencionadas que
possam ser, para amanhãs sem sofrimento, pois não há humanamente qualquer
possibilidade de sentido senão no absoluto do momento em que se está, em que
ontologicamente o acto que sou se situa, como bem provou definitivamente Santo Agostinho.»[10]
5. Conclusão
Em todo pedido de
um paciente terminal para morrer está implícito um pedido de socorro. O direito
à vida tem um conteúdo de proteção positiva que impede de o configurar como um
direito de liberdade que inclua o direito
à própria morte. O Estado, não pode prever e impedir que alguém disponha
do seu direito à vida, suicidando-se ou praticando a eutanásia. No entanto,
isso não coloca a vida como direito disponível, nem a morte como direito
subjectivo da pessoa. O direito à vida não engloba, portanto, o direito
subjectivo de exigir-se a própria morte, no sentido de mobilizar-se o poder
público para garanti-la, por meio, por exemplo, de legislação que permita a
eutanásia ou ainda que forneça meios instrumentais para a prática de suicídios.
O ordenamento jurídico não autoriza, portanto, nenhum dos tipos de eutanásia,
seja a activa ou a passiva.
A natureza indicativa, não vinculativa da 25/2012 é um
aspecto fundamental do documento. Isto permite que o médico fique a conhecer as
opções filosóficas e/ou religiosas do declarante e as tenha em consideração no
seu agir, mas não o impeça de incluir uma técnica potencialmente salvadora.
Do confronto entre a
forma como a discussão desta questão ocorreu em Itália e em Portugal não pode
deixar de se notar o grande contraste entre a forma tão viva e polémica da
discussão em Itália e a discussão aparentemente consensual que deu origem à
aprovação por unanimidade da lei portuguesa. Esse contraste poderá causar
alguma perplexidade: será que o que dividiu os deputados italianos (que tem a
ver, sobretudo, com a questão do relevo de declarações antecipadas de vontade
de recusa de tratamentos úteis e proporcionados à salvaguarda da vida) não
divide os deputados portugueses, ou será que as razões dessa divisão foram
ocultadas ou minimizadas? O mais provável é que a divisão em causa venha a
reflectir-se na interpretação da lei aprovada. Dessa interpretação dependerá saber se a regulação do “testamento vital” se
traduzirá num primeiro passo em direcção à legalização da eutanásia (como
pretenderão alguns dos deputados que aprovaram a lei), ou, pelo contrário, num
obstáculo nessa direcção (como certamente também pretenderão outros dos
deputados que aprovaram essa lei).
Por último acompanhamos Walter Osswald
quando diz:
«A
ambiguidade na formulação legal gera fatalmente conflitos, fundamentalmente
devidos a interpretações divergentes do texto da lei. Além disso é previsível
que dentro em pouco surjam propostas de alteração da lei, no sentido de retirar
entraves ao pleno exercício da autonomia, entendida em sentido absoluto. Em
nosso entender, tal seria altamente lesivo do bom exercício da Medicina,
enquanto serviço prestado aos outros e resultaria, finalmente, em sério
prejuízo dos doentes.»[11]
BIBLIOGRAFIA
· ASSEMBLEIA DA
REPÚBLICA, Lei nº 25/2012 de 16 de julho
· BASTIANEL, Sergio, Moralidade pessoal na história temas de ética social, Editora
Cáritas Portuguesa, Trad. Artur Morão, Lisboa
· PEREIRA, Américo, Uma nobre fome – breve ensaio sobre o sofrimento e o seu sentido, a
partir do primeiro capítulo da obra de C. S. Lewis A grif observed, in Itinerarium: Revista Quadrimestral de
Cultura, Ano 58, Nº. 204, 2012, págs. 483-518
· PATTO, Pedro Vaz, A Discussão sobre o “Testamento Vital” em
Itália e em Portugal, in Brotéria vol. 175, Outubro e Novembro de 2012
· PATTO, P. Vaz, Porque é que o bebé há-de viver? in
Brotéria 174, Março de 2012
Francisco Vaz
25 de Maio de 2014
25 de Maio de 2014
[1] ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, Lei nº 25/2012 de 16 de julho
[2] Como pano de fundo da
discussão, não pode ignorar-se o episódio da morte de Eluana Englaro, uma jovem
em estado vegetativo persistente, privada, por decisão judicial na sequência de
decisões contrárias anteriores, da alimentação e hidratação que a mantinham em
vida desde há vários anos.
[3] «Em caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do
paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o
dever de ter em consideração as diretivas antecipadas de vontade, no caso de o
acesso às mesmas poder implicar uma demora que agrave, previsivelmente, os
riscos para a vida ou a saúde do outorgante.»
[4] «É assegurado
aos profissionais de saúde que prestam cuidados de saúde ao outorgante o
direito à objeção de consciência quando solicitados para o cumprimento do
disposto no documento de diretivas antecipadas de vontade.»
[7] Bastianel, Sergio, Moralidade
pessoal na história temas de ética social, Editora Cáritas Portuguesa,
Trad. Artur Morão, Lisboa, p. 37
[10] Cfr, Pereira, Américo, Uma
nobre fome – breve ensaio sobre o sofrimento e o seu sentido, a partir do
primeiro capítulo da obra de Clive Staples Lewis - A grif observed, Itinerarium: Revista Quadrimestral de Cultura, Ano 58, Nº. 204, 2012, pp. 483-518
[11] Osswald, Walter, Sobre a morte e o
morrer, FFMS, Ensaios da Fundação, Lisboa, Maio, 2013, p. 48