Pecado original

Pecado original

segunda-feira, 1 de junho de 2020

BIOÉTICA - Estatuto epistemológico e questões principais


Neste texto, que é de índole introdutória, iremos procurar entender a necessidade antropológica a que uma «bioética» procura responder, de modo a ser possível entender o que possa ser, precisamente, uma «bioética». Não vamos, assim, partir do que é já a bioética constituída, mas da realidade que parece implicar a existência de uma bioética. Deste modo, a perspectiva será crítica, como é fundamental que seja em toda a reflexão epistemológica séria.
A reflexão acerca da bioética é uma reflexão epistemológica, não é uma reflexão moral. O que está em causa fundamentalmente é o estatuto próprio da bioética como esforço científico de conhecimento, o que implica a sua aplicabilidade concreta em âmbito antropológico. Esta só releva depois de se saber se isso que opera é epistemologicamente pertinente. As disciplinas teóricas ou teórico-práticas – como a bioética – só fazem sentido se relevarem de uma necessidade qualquer real que lhes sirva de fundamento existencial. São sempre ancilares, sempre função de um serviço ao bem-comum. De outro modo, não passam de caprichos infundados, danosos para o mesmo bem-comum. Assim sendo, estudaremos a fundamentação real do surgimento da bioética.
O serviço ao bem-comum por parte destas disciplinas, único fundamento para a sua existência, implica que não devam ser senão um trabalho objectivo de procura de soluções teóricas ou teórico-práticas para problemas reais que implicam negativamente com a realidade humana. Assim, justificam-se apenas como meios de buscar modos praticáveis de auxílio ao melhor possível da vida de todos os seres humanos, sem
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excepção. De outro modo, não são apenas inúteis como são realmente nocivas e não devem existir, pois delapidam recursos que são sempre, por causa da finitude dos meios à nossa disposição, escassos.
Tendo isto em consideração, em tais disciplinas e mormente numa humanamente tão sensível como a bioética, a procura da objectividade deve ser total e incessante, devendo ser afastado delas todas as formas de subjectivismo, todas as formas de redução da realidade a mera forma de interesse pessoal ou sectário: o que está em causa, repetimos, é o bem- comum da humanidade, não o meu bem ou o bem exclusivo de qualquer parte reduzida dessa mesma humanidade, no que configura sempre uma qualquer forma fascizante e tiranizante.
Logo, tudo quanto seja ideológico deve ser liminarmente afastado de tais disciplinas, isto é, de toda a ciência, pois é do que se trata. O cultor desta actividade deve procurar ser o mais inocente humanamente possível, do ponto de vista de todo o preconceito ou prejuízo. Será a realidade, na sua omnidimensionalidade, que será o únido guia possível para tal labor. Ora, o que acabou de se enunciar nada mais é do que o grande princípio epistemológico da independência do investigador relativamente a tudo o que não seja a mesma fidelidade ao conhecimento do objecto de estudo em causa. É esta a razão pela qual não há mesmo, por mais que se diga ou esforços que se façam, uma «ciência nazi» ou uma «ciência estalinista»,1 por exemplo, mas apenas ciência ou não-ciência.
Compreende-se, assim, por maioria de razão, que uma «bioética» que queira ser ciência e ciência aplicável e ciência aplicada (sem o que não tem qualquer interesse, não passando de mais uma forma de ludíbrio pseudo- intelectual), tem de ser epistemologicamente válida, isto é, tem de possuir
1 O mesmo não é dizer que não tenha havido seres humanos nazis ou estalinistas que tenham procurado fazer ciência, mas onde deixaram que a ideologia os condicionasse, aí, deixaram de ser cientistas e passaram a ser meros agentes políticos dos senhores ou das causas a que serviam e de que eventualmente se serviam. A ciência, quando existe propriamente como ciência, não como actividade prostituída aos senhores do momento, é independente da bestialidade ambiente em que possa ocorrer.
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não apenas uma estrutura metodológica formalmente lógica, mas também um objecto que a justifique e procedimentos que respeitem metodologicamente tal objecto. A bioética, a ser epistemologicamente válida, não pode ser um instrumento político de intervenção tirânica, antes uma forma lógica de auxiliar a resolver prática e pragmaticamente os problemas reais que teoricamente apreendeu. Este «dever» não é moral, mas formal, objectivo, ditado pela sua própria pretensão epistemológica.
O nome escolhido para a disciplina não pode deixar de ser perspectivado criticamente, sem o que se fica com a incómoda impressão de que os cultores da disciplina não sabem muito bem o que querem e do que tratam. Assim, o termo «bioética» compõem-se dos evidentes sub- termos «bio» e «ética», ambos de origem helénica. «Bio» traduz para algumas linguagens modernas o étimo grego homologamente transliterado «bio», que se refere ao termo grego, masculino do singular, «bios», «vida». «Ética» refere-se a dois étimos substantivos helénicos, que grafamos em português de modo idêntico, «ethos», mas que se distinguiam graficamente por um possuir um «epsilon», «e» breve e aberto, e o outro um «eta», «e» longo e fechado. O primeiro termo diz respeito a «costume», «uso», mas também a «hábito»; o segundo diz respeito a «morada», «lugar habitual de permanência», mas também a «hábito». Ambos os termos referem-se, portanto, genericamente, a «modo de ser».
A ética, como disciplina, tem procurado equilibrar-se entre os extremos exclusivistas de uma mera ciência descritiva do que é a agência humana e uma normatividade dessa e para essa mesma agência. Ora, o que a ética é verdadeiramente é a mesma agência humana, enquanto tal e enquanto própria de um sujeito, nisso insubstituível como única fonte possível principial para a sua mesma agência, sempre pessoal e irredutível (ver nosso estudo «Ética e política: essência e relação», Itinerarium, Ano LIV, no 191, Maio-Agosto de 2008, pp. 209-231).
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Assim, a ética sofrerá sempre desta ambiguidade, sendo sempre quer a própria agência humana, enquanto principialidade da mesma, e o seu estudo. Há também quem queira que a ética seja algo de normativo, confundindo ética com direito, confusão que em nada beneficia a disciplina e quem com ela trabalha. Deste modo, a bioética acaba por sofrer com toda esta falta de clareza, não se percebendo, muitas vezes, se isso de que se trata se refere ao que objectivamente se passa em termos da fontalidade da agência humana, ao seu estudo científico, a uma tentativa jurídica de normalização do mesmo âmbito real daquela agência.
No detalhe das questões do universo da bioética, para além desta reflexão epistemológica inicial, que permite validar ou invalidar criticamente a disciplina, salientamos, entre outras mais relevantes, as seguintes:
Que se entende por vida? O que é a vida, ontologicamente? Qual a especificidade da vida humana? Que é propriamente «ser-se humano» e não um mero outro ser biológico qualquer? Quais são as consequências deste entendimento para a bioética? Que relacionamento há entre as ciências da vida e a bioética? Qual a realidade própria sobre a qual a bioética se debruça?
Qual é a relação especial da bioética com uma ecologia que saiba situar o lugar do ser humano no conjunto holodinâmico da realidade biológica geral conhecida? Qual a relação especial da bioética com a ética geral e com a política. Qual é a dimensão política essencial e substancial da bioética?
Outras questões fundamentais são: Fundamentação filosófica da bioética.
Identidade, pessoalidade, relação da materialidade física do ser humano com a sua realidade total. A genética, a cultura e a irredutível pessoalidade.
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Corporeidade, sexualidade, irrepetibilidade, clonagem e diferença espiritual.
Formas artificialistas de relação com o humano: manipulação genética, reprodutiva e curativa.
Direito à vida, direito à sobrevivência.
Direitos especiais dos menos fortes. Escolhas civilizacionais definidoras do estatuto que a humanidade quer para si própria: uma civilização da vida ou da morte?
A saúde e a doença. Os cuidados de saúde. Ênfase curativo ou preventivo? A relação da prestação de cuidados de saúde com a política estatal e a economia. A saúde e a sobrevivência dos povos e da própria humanidade. As ameaças naturais e culturais à saúde e sobrevivência da humanidade.
A questão da guerra e os seus efeitos sobre a vida e a saúde das pessoas. Uma bioética especial para tempos de guerra?
A questão da morte como questão vital. O direito a morrer; o direito a morrer com dignidade; o direito a matar; o direito a matar-se; o direito a matar o outro. A questão da chamada «eutanásia».
Bioética e virtudes. Bioética e as virtudes cardeais.
Necessidade de uma nova «Magna carta» para uma conduta humana que tenha como única finalidade o bem-comum.
Américo Pereira
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31/12/2017

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Ecologia e falsidade


A primeira falsidade acerca da ecologia é tratar-se esta de uma «questão natural». Ora, na natureza, não há quaisquer questões, pois apenas em seio de cultura podem estas surgir. A questão ecológica é cultural, humana, portanto.
Não havia mais do que estrita obediência física aos princípios naturais de movimento, incluindo as várias formas de potencialidade e de cinese, quando, antes de haver seres humanos, por exemplo, um vulcão emitia alguns milhares ou milhões de toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera. Aliás, a atmosfera nasceu precisamente da emissão de gases por parte de vulcões e outros entes naturais naturalmente emissores de gases, sem que tal constituísse questão alguma.
Em tais emissores se incluem as naturalíssimas estrumeiras animais, turfeiras e outras demais fontes por estas tipificadas. Antes de haver humanidade, com tudo isto e muito mais presente em termos ecossistémicos, não havia questão ecológica alguma. Havia o movimento natural de tudo, com as consequências necessárias. Nada se preocupava, pois nada se podia preocupar, dado que nenhum ser havia que se pudesse preocupar. A natureza é laica, não tem deuses.
É com o surgimento da humanidade – que é operativamente indistinguível da ação humana que propriamente a constitui – que surge uma modificação radical no ecossistema: a possibilidade de haver entidades que podem não obedecer deliberadamente aos comuns anteriores princípios físicos omnipresentes e omnireinantes.
É também com este surgimento que ocorre a presença de entidades com capacidade para se questionarem, entre outras coisas, sobre a sua ação sobre o ambiente.
É também falso que a consciência ambiental seja algo de recente, especialmente remontando apenas à década de sessenta do século passado. É antiquíssimo o sentido – não se lhe pode chamar «consciência» porque o termo não existia, o que não impede que isso a que se refere como sentido existisse, sem ilusão retrospetiva – da gravidade, do peso próprio irredutível da relação entre o ser humano em sua ação e isso que fisicamente o transcende, chame-se-lhe ecossistema, ambiente, mundo.
Como não ver já no mito da expulsão do casal genesíaco um primeiro momento em que a ação humana sobre o mundo é trazida em sua grave consequência à cultural colação? Como não ver nos mitos de degradação antropológica e ecossistémica a
 partir de «idades de ouro» a tradução variegada de uma mesma preocupação? Como não ver nos vários tipos – alguns propostos já em âmbito filosófico – de recosmicização de mundos caotizados pela ação humana, mundos tornados imundos pela poluição operada pelas várias culturas destrutivas, formas também elas de preocupação fortíssima com o sentido e finalidade possível de uma realidade de relação entre humanidade e meio-ambiente em que a primeira ameaçava o segundo?
Como não ver em teorias éticas e políticas várias dedicadas à promoção do bem- comum uma busca de respostas teóricas universalizáveis em termos práticos e pragmáticos como modos de combater as várias formas de imundície cultural antinatural?
Velha mentira é também a que proclama que há seres humanos em demasia – sempre os outros, nunca nós e os nossos. Mesmo com a quantidade de seres humanos que se pensa haver hodiernamente, perto de oito mil milhões (8.000.000.000), há que perceber que fisicamente, em posição de pé e com uma densidade típica de carruagem de metropolitano em hora de ponta, a oito por metro quadrado, todos cabem na superfície dos Açores. São, assim tantos?
Quanto à escassez de recursos, antes de a decretar, há que pensar se na América do Norte e na Europa, entre outras regiões ditas desenvolvidas, não consome em recursos totais cada ser humano o equivalente a várias vezes aquilo de que realmente necessita, por exemplo, em termos de comida. Quem come um bife de mil gramas está a comer proteína por dez pessoas, o que faz, imediatamente que, para ele e seu egoísmo, o mundo tem apenas oitocentos milhões de seres humanos tão gulosos quanto ele. Todavia, de facto, não tem oitocentos milhões de apenas gulosos, mas oito mil milhões, entre gulosos, equilibrados e muitos com fome, fome de comida que, afinal, sempre existe.
Falsidade final: que se esteja efetivamente a fazer – a agir – muito no sentido de atenuar e inverter impactos negativos em termos de poluição, por exemplo, a de excesso de carbono em várias formas moleculares na atmosfera. Um passo objetivamente muito mais eficaz do que fabricar através de forte poluição industrial automóveis elétricos é obrigar e ajudar a mudança de máquinas que gastam na ordem dos dez litros por cada cem quilómetros para máquinas que gastem metade. A quebra de emissões é evidente e a tecnologia e técnica estão prontas e disponíveis. O resultado é muito mais rápido e eficaz.
Por outro lado, é grande a mentira – falsidade que é propositada – quando se procura convencer as pessoas de que se está a investir grandemente no plantio de

árvores. Quantas árvores estão a ser plantadas no mundo não apenas em substituição de outras em searas de árvores – uma floresta é outra coisa – mas em novas searas de árvores, estas dedicadas à fixação do carbono?
Faz-se sequer ideia da quantidade que é possível plantar, com mais ou menos custos, mas, sem dúvida, gastando muito menos do que se gasta em material militar inútil?
O recurso a uma aritmética muito simples pode ajudar a compreender o que está em causa em termos da grandeza do possível e da grandeza do realizado. Se se plantar – nalguns casos, pode mesmo semear-se – uma árvore de dois em dois metros, em grelha, obtém-se por cada quilómetro quadrado um número impressionante de árvores: 500 x 500 árvores = 250 000 árvores. Ora, uma superfície um pouco maior do que a de Portugal, com cem mil quilómetros quadrados, permite plantar o seguinte número de árvores: 250.000 x 100.000 = 25.000.000.000. Vinte e cinco mil milhões. Três árvores por cada habitante da Terra.
Pense-se no que significa toda a área dos vários desertos quentes transformados em searas de árvores deste tipo. Dirão os sábios que se trata de uma ignara utopia. Todavia, ignaro é pensar-se que não é possível criar laranjas no quente deserto. É difícil e trabalhoso, mas é possível. É labor de paz. Sem mentir.
Américo
Universidade
Imagem:
Publicado em 06.12.2019
Portuguesa,
Faculdade
de
Pereira Ciências Humanas MicroOne/Bigstock.com

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Da ética como autopoética do humano

Embora o termo «ética» faça parte do título desta breve reflexão e muitas vezes por «ética» se entenda apenas ou prioritariamente a disciplina académica – quiçá, ciência – dedicada à normatividade não-jurídica da ação humana, não é este o sentido que será aqui usado, assumindo «ética» como, fundamentalmente, a própria ação humana na sua transcendentalidade máxima: a ética é o todo da ação humana, de que fazem parte quer as ações ditas «boas» quer as ações ditas «más».
Não se distingue, assim, entre «ato de homem» e «ato humano», pois, sem qualquer destes dois tipos analíticos da ação humana, não há propriamente «ação humana». Não há, também, qualquer ação de um ser humano que não tenha um qualquer sentido humano, dado que é através da ação que o ser humano se constrói como sentido.
Não desconhecemos a confusão moderna entre «ética» e ação de algum modo «boa», que relega o que seja a ação «não-boa» para o campo do não ético. Desta não-bondade da ação faz parte, eventualmente, a ausência de um sentido transcendental de autonomia regida por princípios a priori. Estas restrições do âmbito da ética implicam que se possa cair no absurdo de considerar como totalmente não-ética toda a existência ativa de um qualquer ser humano, levando a questionar o que seja, então, isso a que tal ser humano ético-transcendentalmente foi reduzido. O que é, na sua realidade onto-antropológica, um ser humano não-ético?
Tal ente mais não é do que uma abstração ou, então, pior, é mesmo um ser humano que foi reduzido ontologicamente a algo que poderá ser tudo menos uma entidade ética, de que temos exemplos aproximativos nas narrações feitas por pessoas submetidas a máquinas políticas de redução ética humana como foram os campos de concentração e de morte nazis, de que podemos salientar, pela exemplaridade, os textos de Primo Levi. Todavia, volta a questionar-se, que é isso de um ser humano que não é uma realidade, uma entidade atualmente ética?
Se se retira a realidade ética – que, fora de um regime abstracionista, é sempre algo da ordem do facto, do concreto que cria a história, ato a ato – a um ser humano, sobra exatamente o quê?
Não é esta redução transcendental factícia uma forma de redução ontológica, mais do que ética?; quer dizer, não é esta redução ética do ser humano uma redução realmente ontológica em que se retira a dimensão factual propriamente ativa a um ser humano, assim reduzindo a sua dimensão onto-antropológica fundamental, que é a sua capacidade – possibilidade ontológica radical – de se construir ato a ato, ato seu a ato seu? Ato com que coincide o seu ser próprio, precisamente de forma «ativa».
Apenas esta atualidade, que é mais do que própria ou apropriada, mas é coincidente com o ato-ser próprio de cada pessoa humana, permite que se possa falar de liberdade; esta não depende de qualquer forma normativa, imanente ou transcendente, mas da assunção como próprios dos atos que constituem cada ser humano. Tal diz-se de todos os atos assim autocriados, sem exceção, abarcando todo o possível e real bem e todo o possível e real mal.
Ato seu irredutível, a ato seu irredutível, não é precisamente assim que o ente humano se cria? Ato que é irredutível, no sentido em que, de facto – facto que é um ato –, cada seu movimento diferenciador relativamente ao que era, ao que já foi no absoluto da atualidade já havida e que cria isso a que se chama «passado», e que institui uma nova realidade ontológica diferenciada sua, ato que é, independente de qualquer outra consideração, mesmo seu, melhor, mesmo isso que é, em seu ato próprio, então, assim irredutível: tal movimento – em sentido ontológico, isto é, cada sua diferenciação de que foi motor próprio – é absolutamente seu, é absolutamente o que é como autoconstituição própria, independentemente de qualquer forma de circunstancialidade, sendo que, se tal circunstancialidade anular tal autonomia de motricidade de movimento ontológico de diferenciação, tal significa que, na verdade, já não há propriamente um ser humano, mas ou um cadáver movimentado por forças físicas totalmente a si transcendentes ou um ser apenas com figura humana ou com figura de vida humana, mas algo de já não verdadeiramente humano, estando nele morta a humanidade.
Esta imagem, terrível, surge muitas vezes, por exemplo, nos já mencionados escritos de Primo Levi e em muitos outros: a imagem de uma humanidade aniquilada, de facto, em corpos já quase apenas físicos ou zoo-biológicos, que se arrastam penosamente num vão afã de humana sobrevivência, mas que, na maior parte das vezes, não passa de uma desesperada subvivência animalizada. Esta animalização é fruto da ação, isto é, é fruto ético e político de uns seres humanos sobre outros, dos tiranos sobre os tiranizados.
É este estado reduzido que se encontra em tantos relatos, por exemplo, nos campos de extermínio nazi, ou em outros a que estes servem de conhecido paradigma? A resposta, que se encontra em muitos relatos fidedignos, é simples e é sim (a este propósito é claríssima a narrativa que Primo Levi faz nas suas obras, por exemplo, em Se isto é um homem?).
Ora, eliminada a totalidade da dimensão ética no ser humano, elimina-se o ser humano como tal, dele nada ficando de propriamente humano, porque dele nada fica que se lhe possa atribuir como ato seu. No limite, poder-se-ia pensar num ente, diferente do que é o ser humano, que fosse apenas um ser de paixão, sem ação. Nenhum ser humano pode, por absoluta falta de experiência do que tal seja, sequer imaginar a que possa corresponder tal ser alternativo.
Se bem que imprescindível para que o próprio humano se possa constituir, a passionalidade só é humana se se encontrar indissoluvelmente ligada a uma qualquer atividade, que tem de ser propriamente humana, não apenas mecânica, ao modo pavloviano ou watsoniano.
É esta atividade coincidente com o ato autónomo de cada ser humano que corresponde à autopoiese humana.
Esta autopoiese é sempre da ordem do ético. Esta autopoiese funda a liberdade humana e coincide com esta mesma liberdade, eliminado toda a argumentação que procura condicionar toda a atividade possível e concreta humana a ser nada mais do que uma decorrência mecânica de cânones heteronómicos porque antropo-transcendentes, ou, também, ao perigo de eventuais formas várias de ilusão, não percebendo que todo o ato – necessariamente imanente como Descartes bem percebeu – em que o ser humano qualquer se põe em e como ser é sempre absolutamente autónomo, porque é, como tal, independente de tudo, sendo que a grande ilusão consiste em pensar que a maior ilusão não é, ainda, um ato, logo, algo que absolutamente se opõe ao nada, único correlativo ontológico que pode ameaçar o absoluto do ato autónomo do ser humano, como também Descartes bem percebeu.
O melhor exemplo deste absoluto de autonomia ética e política, logo, de liberdade, encontramo-lo no início da narrativa genésica judaico-cristã, quando, independentemente de todo o contexto, hiperbolicamente ignorando a própria palavra de isso que constitui o absoluto da diferença ontológica entre o ser mundano e o nada – que surge com a designação de «Deus» – os seres humanos prototípicos agem como, precisamente, querem, mesmo sob a ameaça da aniquilação, única verdadeira condicionante séria em termos éticos, porque põe, em absoluto, em causa o ser do possível agente. É esta e não outra qualquer a densidade ontológica de cada ato e, assim, de toda a possível e real ética e sua decorrente política.
Não é pensável a ética como auto-ontopoiese humana sem que se suponha algo que faça movimentar o ser humano em sentido diferencial relativamente a qualquer possível situação ontológica em que se encontre.
Por que razão age o ser humano? Por que não haver um contentamento final em qualquer fase da sua ação, assim a terminando definitivamente? Não se está a pôr aqui a questão da chamada «felicidade», mas a indagar qual seja o motor imanente do movimento humano. Sem este motor imanente, o ser humano cessa.
Como eventual exemplo, as contemporâneas e positivistas biologias genéticas poderão afirmar – passe a prosopopeia – que o que move o ser humano é, em última análise, o ADN, como fim programático e mapa de roteiro para a concretização de si próprio, assim, como que endeusando as moléculas do ácido desoxirribonucleico. É mais uma religião, entre outras.
A questão não se situa a este nível, ainda e apenas material, mas ao nível do sentido: do ponto de vista do sentido, do ato lógico com que cada ser humano sempre coincide, o que é que o move para que continue agindo, isto é, sendo?
Aqui, encontramos uma questão que merece reflexão aprofundada e que deixamos como mote para reflexão.


Américo Pereira

Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 17.04.2019

domingo, 26 de maio de 2019

A propósito de um campeão

Os falhados
Talvez nunca como hoje as questões ligadas à definição ontológica do que é um ser humano, uma pessoa, foram tão relevantes, numa altura da história em que, após mais de trinta séculos de transição de um estado de definição antropológica baseado em primitivas categorias etnocêntricas – que sempre reduzem a dignidade ontológica do diferente –, a um estado de consciência antropológica, ética e política de uma comum humanidade universalmente verificável, se caminha perigosamente em sentido inverso.
Após a maior vergonha antropológica da história da humanidade constituída pelo massacre de dezenas de milhão de pessoas aquando da Segunda Guerra Mundial, muitos destes milhões apenas porque foram considerados desconformes a formas precisamente etnocêntricas, outros apenas porque estavam no sítio em que os senhores da guerra localizaram esta, após se ter erigido a Declaração Universal dos Direitos do Homem, logo após tal matança, a mesma humanidade parece ter enveredado por um caminho de regresso à estupidez primitivista que está na base de todas as discriminações antropológicas, de todas as formas de denegação da dignidade humana de uns seres humanos por outros, de toda as formas de escravização.
Interroga-se: tanto sofrimento para quê? Tanto trabalho de esclarecimento lógico-racional para quê? Para que uns quantos arautos de uma redescida aos infernos da irracionalidade triunfem, fazendo a humanidade regressar a tempos de antes das grandes denúncias antropológicas da tiranização de uns por outros?
Com a animalização biologista da humanidade e a igualização entre a besta – por simpática que seja – e o ser humano; com o renovado triunfo dos movimentos promotores da tirania, encorajados pela transferência maciça da riqueza para o oriente de tradição esclavagista de que nunca prescindiu e que sabe disfarçar muito bem, até com teorias que justificam engenhosa e requintadamente todas as formas de submissão ao tirano; com o renovar da tradição depredatória ocidental, em que, de facto, o ser humano é lobo do ser humano; com todos estes movimentos lançando para a sargeta da história os que não podem ou não querem fazer parte de um tal mundo, impiedosamente tratando tudo o que considera fraco ou simplesmente desconsidera porque elege como não-querido, de que o exemplo maior foi Adolf Hitler, a humanidade encaminha-se para um abismo de bestialidade antropológica ou de puro e simples caos.
O universo humano substituído por um universo mecânico mais poderoso do que o seu criador humano começa a apresentar-se como alternativa, como se pode perceber pelas figuras criadas por um George Lucas, que chega a trocar o pessoal médico por máquinas, em Guerra das Estrelas; por um Spielberg, que cria um menino mecânico mais propriamente humano do que os seres humanos que o construíram, em Inteligência Artificial; pelos irmãos Wachowski, na sua antropologicamente muito significativa epopeia antropo-mecânica Matrix. Todas estas são obras consumidas cumulativamente por centenas de milhão de pessoas.
É um tempo em que a definição de humanidade está em causa, logo após uma raríssima parte da humanidade possidente ter posto em forma escrita, que deveria ser Lei, mas que não passa de um papel ignorado, uma Declaração que supõe uma definição antropológica capaz de obviar a todos estes movimentos de irracionalização, de indignificação onto-antropológica da humanidade.
Mas que é isso da humanidade? O que é ser-se um ser humano?
Nenhuma definição pode já ser aceite como boa universalmente, tal a qualidade perversa do trabalho de sapa que foi feito precisamente para impedir tal definição universal.
A única resposta universalizável, mesmo para e com as mais irredutivelmente perversas pessoas – sempre pessoas – é esta: o ser humano é isso que vês quando te olhas ao espelho. Isso que faz de ti isso que vês ao espelho é estruturalmente o mesmo em e para todos os seres que também assim se vêem ao espelho e que tu podes ver como são, se te dignares olhar para eles como te dignas olhar para ti, ao espelho.
Ainda assim, e por causa da perversidade do olhar, perversidade que não é possível eliminar sem que se elimine quem assim olha – precisamente o ponto aqui em causa –, esta definição claudica: que vê um Hitler quando olha um «indesejado»? Um semelhante à sua imagem especular? Claramente não.
Mas e não há um hitlerzinho potencial em cada olhar de cada um de nós? Em mim, há, bem o sei. E eu sei que não sou diferente senão em grau dos demais, porque eu já me vi ao espelho e já olhei e olho os outros como eles são, não como eu os quero ver. É uma boa experiência: morta a vaidade, é não só não-dolorosa, como absolutamente deliciosa. Que bom é ver no outro não a besta semelhante a mim, mas a pessoa semelhante a mim.
O campeão
Por isso gosto muito de olhar para o meu atleta favorito, o meu Amigo João, o campeão que já ganhou dezenas e dezenas de troféus. O homem que é capaz de nadar mil e quinhentos metros em estilo mariposa, quando o máximo que já consegui nadar nesta especialidade foi vinte e cinco metros. Se empregarmos uma perversa antropologia métrica, o João é sessenta vezes melhor do que eu a nadar em estilo mariposa. Nisto das comparações antropológicas, tão em voga, pobre de mim.
Como nunca ganhei qualquer medalha em qualquer desporto e a diferença entre nada e muitas dezenas é infinita, o João é infinitamente melhor do que eu a ganhar medalhas desportivas. Estou mal.
Mas posso recuperar: eu sou um filho razoável e o João é um bom filho. Já estou mais próximo. O João gosta muito de raparigas e eu também sempre gostei. Consegui um empate. O João é bom no que faz na escola e eu também por aí ando. Outro empate.
O João, com tanto exercício, é de uma elegância imbatível; eu tenho a barriga burguesa que se espera de um homem com 52 anos e sedentário. Já estou de novo a perder. Comparar seres humanos é ingrato. Na comparação, perde-se sempre algo, ao relativizar-se o que é absoluto na pessoa a uma outra pessoa, assim as relativizando a ambas. É um processo destruidor do que há de absoluto em cada ser humano, algo que nunca deve ser relativizado.
As pessoas são o absoluto de isso que surge no espelho invocado algumas linhas acima (não confundir com o reflexo). E, ou cada pessoa percebe tal e é, assim, possível construir uma humanidade real de reais pessoas, ou não percebe e está a humanidade condenada ou à bestialização ou à erradicação.
O João, na sua grandeza ontológica própria de pessoa, todos os «João» – e todas as «Joanas» (o João tem mesmo uma irmã chamada Joana e muito se amam) –, os Pais de todos os «João», todos os que nos servem de exemplo, mas também todos os outros, porque o João é a humanidade numa pessoa, como cada um de nós é a humanidade numa pessoa, são para ser contemplados no que são e, nisso, amados.
Esqueço-me de um pormenor, agora irrelevante: o João, o João Vaz tem Trissomia 21. E eu sinto-me profundamente humilde perante tão grande humanidade nele.
Outubro de 2016
Américo Pereira


quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

João Vaz - Excelência humana e atlética

 
        Olhando quer retrospectivamente quer de forma sincrónica para o conjunto sempre em mutação que constitui isso que se designa diplomaticamente como «humanidade» percebe-se que talvez o maior problema que, a este nível, existe é o da definição precisa do que é propriamente a humanidade, o que é propriamente ser-se humano, um ser humano.
Todas as formas tribalistas antigas e contemporâneas definem o próprio do humano como isso que obedece aos princípios míticos em torno dos quais se constitui a tribo a que se pertence, sejam tais princípios claramente assumidos como míticos sejam disfarçados de formas “superiores” de racionalidade.
Ora, a humanidade tribal sempre se definiu propriamente por oposição à definição do que é propriamente humano nas outras tribos. Tal significa que o que é mesmo humano é o que pertence ao que o mito da minha tribo define como tal. A definição de humanidade e de ser humano seu constituinte é, assim, um acto cultural e apenas cultural.
Pode ser o nazi-ariano por oposição ao restante da humanidade; pode ser o membro do Klan norte americano, através do mesmo modo universal de distinção; pode ser o “branco” relativamente ao “preto” ou o “preto” relativamente ao “branco”; pode ser o rico relativamente ao pobre; o indivíduo com elevado QI relativamente ao de baixo QI, mas cuja acção aquele explora porque não pode viver sem ela.
Todavia, também pode ser o “saudável” relativamente ao “doente” ou o “normal” relativamente ao “anormal”. Estas distinções, todas elas etnocêntricas, todas elas onto-antropológica, ética e politicamente ilegítimas fundaram as relações humanas e continuam a fundá-las, mesmo no campo macro da geopolítica e das, assim perversas, relações internacionais entre estados, povos, nações, instituições várias.
Sendo este panorama etnocêntrico universal o que é, apesar das superficiais declarações em contrário, proferidas pelos mesmos responsáveis pela existência de tais perversidades antropológicas e político-sociais, não é de surpreender que se estenda, também, ao campo do desporto, em que a discriminação etnocêntrica vária ainda se encontra presente.
Uma destas presenças consiste em tratar os desportistas que não são considerados como aptos a competir com os ditos “normais” como desportistas de ordem inferior, assim os tratando como se de uma tribo menor se tratasse, impassível de conviver ao mesmo nível da tribo dos “bons”, dos privilegiados pela natureza, dos que foram eleitos para se destacarem antropologicamente entre os seres humanos que a si próprios se consideram como os normais, classificação que recebe tacitamente o beneplácito das instituições nacionais e internacionais que aceitam tal classificação, tal discriminação.
Ora, subjacente a esta discriminação está o irracional preconceito de que os chamados «deficientes» não são seres humanos semelhantes aos outros, apenas diferentes, nas circunstâncias que são as suas.
Não há qualquer razão para que, consideradas positiva e não negativamente as suas diferenças, não possam e mesmo devam poder fazer tudo o que os outros fazem, também segundo as suas diferenças próprias, sem que sejam considerados «menos humanos» ou indignos de estar lado-a-lado com os demais ditos «normais».
Há que notar que todos os seres humanos são deficientes de um modo ou de outro: que capacidade tem um homem com dois metros e vinte de altura e cento e cinquenta quilos de peso para ser cavaleiro de corridas de velocidade? Isso faz dele «anormal», deficiente, menos humano por comparação com o habitual cavaleiro com um metro e sessenta de altura e sessenta quilos de peso?
Então, por que razão não hão-de os atletas, quaisquer, mas sobretudo os excelentes em sua diferença, ser tratados como humanamente semelhantes em direitos e deveres aos outros, aos ditos «normais»?
Por que razão não haver, mas haver mesmo, competições em que uns e outros se pudessem encontrar, não para competir humilhando-se, mas para competir imbricando as suas diferentes formas de uma mesma humanidade?
Por que razão certas formas de desporto não são ainda reconhecidas como olímpicas, como, por exemplo, a natação dita «adaptada»? «Adaptada» a quê? Ou será que a «normal» também não é adaptada ao seu nível e modo; ou é «desadaptada», talvez «inadaptada»? Não é todo o desporto necessariamente adaptado ao que é como desporto diferenciado?
 Toda esta irracionalidade, inaceitável neste século XXI e fruto de estruturas antropológicas arcaicas e primitivas que já deveriam ter desaparecido, obriga a que atletas de várias modalidades «não-normais» tenham muito mais dificuldade em procurar e manifestar a sua excelência possível do que os proclamados «normais». Ora, tais dificuldades implicam que os triunfos destes atletas desconsiderados tenham um mérito relativo e absoluto muito maior do que os outros, apaparicados etnocentricamente pelo sistema discriminatório, em que os «normais» privilegiam os «normais».
Serve esta reflexão para ajudar a magnificar algo que concretiza um ponto de viragem fundamental e de grande dignidade antropológica, ética e política e que é a presença de atletas especialmente diferenciados na selecção para o Prémio do Melhor Atleta do Ano, relativo a 2018, promovido pela Confederação do Desporto de Portugal.
O facto de se pôr debaixo de uma única designação antropológica universal – agora – todos os atletas, independentemente da sua especial diferença, constitui um marco cultural e civilizacional do mais elevado mérito humano, cumpridor da Carta dos Direitos Humanos.
No desporto, como no mais da vida humana, em termos de mérito pessoal, o que interessa são os actos que cada um fez, que cada um é. O mais é especulativo, quiçá, preconceituoso.
No caso vertente, é o palmarés objectivo que deve contar e, a partir dele, ser feito o juízo acerca de quem foram os melhores, realmente, sem preconceitos ou má-fé.
O grande Atleta nadador João Vaz, ser humano portador de trissomia vinte e um, foi este ano incluído na lista dos possíveis melhores. Foi-o objectivamente: não porque pertence a quotas, não porque é visto de modo especial, mas porque se integra na normalidade do que deve ser a triagem e eleição normal de todos os seres humanos – identicamente humanos – em qualquer âmbito da acção humana.
Parabéns ao João; mas, sobretudo, parabéns a quem conseguiu pessoal e institucionalmente evoluir para um patamar de inteligência em que formal e materialmente se supera tudo o que são atavismos etnocêntricos aniquiladores da objectiva dignidade humana.
Está também Portugal de parabéns. Encetado o caminho, agora há que não vacilar e não retroceder, sobretudo em tempos em que as velhas estruturas etnocêntricas estão a reganhar terreno.
Janeiro de 2019
Américo Pereira
FCH/UCP

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Bioética XIII - A questão do aborto


Isso que é comummente designado como «aborto voluntário» e que ostenta a designação técnica de «interrupção voluntária da gravidez», também conhecida como IVG, recebe toda a sua importância e premência por nele estar ou poder estar em causa uma realidade propriamente humana. Se tal não acontecesse, a sua relevância seria nula. Assim, se se tratasse da simples remoção de um mero corpo estranho, isto é, de uma coisa estranha ao corpo portador, tal constituiria apenas uma intervenção sanitária comum, tão comum como fazer a ablação de um pedaço de estilhaço ou de um tumor, por exemplo.
Quaisquer intervenções prototipificadas nestes exemplos não constituem qualquer problema ético ou bioético quer relativamente a isso que se remove quer para o sujeito intervencionado, salvo se tal intervenção puder fazer perigar um qualquer bem maior. Esta é a única ressalva lógica e racionalmente aceitável.
É apenas através da lógica e da razão que estes temas éticos e bioéticos devem ser abordados, respeitando integralmente a capacidade que a lógica e a razão possuem na mediação que permite o acesso à realidade das coisas.
Assim, todos os supostos ou pressupostos que não respeitam a lógica ou a razão, sejam quais forem as suas origens, devem ser liminarmente recusados. Deste modo, apenas a evidência lógica e racional é aceitável, não sendo aceites quaisquer contribuições que pretendam violentar, no curso da reflexão lógica e racional, num sentido ou noutro, a realidade da evidência, tanto quanto ela é humanamente possível, em cada dado momento da marcha do pensamento humano, sabendo que ninguém possui humanamente qualquer verdade que deva ser imposta como definitiva.
Mesmo no âmbito da religião, nenhuma verdade se opõe ao que é o sentido de um ordenamento lógico e estruturalmente racional das coisas. A religião não o faz, nada o deve fazer. Os momentos de desrespeito lógico-racional devem ser postos de parte. O que interessa, humanamente, é a defesa de um bem maior possível, bem que é, humanamente, sempre, um necessário bem-comum, que não é compaginável quer com um bem privado individual, privativo do bem alheio, quer com o bem de um grupo parcial, por maior que seja, mas que é o bem de todos, o bem para todos, que permita, na realidade, o melhor bem possível para cada ser.
Assim sendo, há uma necessária dimensão política em bioética (há-a na ética em geral, se não se considerar o ser humano como uma «ilha isolada»), que implica que haja sempre um acordo entre as várias possibilidades de bem dos vários intervenientes. O prejuízo do bem, real ou possível, de um em benefício do bem, real ou possível, de outro – assim indevido – é sempre a escravização tópica do prejudicado relativamente ao beneficiado.
Poder-se-á dizer que o modo comum de relação entre os seres humanos sempre foi tipificado por uma tal relação. A universalização de uma tal forma de relação, a existir, significaria que a humanidade fora, desde sempre, constituída por dois tipos de seres: parasitas e parasitados. Mas é este o verdadeiro registo da agência humana?
Cada ser humano, relativamente a qualquer outro ser humano, é apenas um possível parasita ou um possível parasitável?
Não deverá a relação humana ser toda ela e sempre apontada à promoção exclusiva do maior bem para todos, sem omissão de qualquer um?
É este o desiderato do bem-comum, sem o qual, sem a aplicação do qual, a humanidade nunca passará da tal relação entre parasitas e parasitados, pois haverá sempre um qualquer ser humano – pelo menos um – que será feito mera função do bem de outro ou outros, sem que possa ter direito a um bem próprio seu, nisso irredutível.
Assim, como em todas as questões realmente bioéticas, a linha orientadora lógica e racional do pensamento deve ser a do bem-comum, sem o que é a mesma humanidade que é posta em causa, pois é a negação do direito a uma plena humanidade que está em causa.
As questões profundas no âmbito do aborto voluntário nascem aqui e apenas aqui.
No limite, haverá sempre um conflito entre o direito a um bem qualquer por parte de quem quer abortar e o direito ao bem de isso que poderá ser abortado a partir daquela vontade. O mais decorre daqui.
É, assim, a faceta voluntária desta possibilidade que suscita problemas: um aborto não voluntário, isto é, em que não haja qualquer intervenção humana que o provoque, nunca constitui problema bioético ou sequer ético, limita-se a acontecer e a ter as consequências sanitárias que dele decorrerem, físicas ou não-físicas.
Mas o que, do lado do ente abortável, tem real peso é o seu estatuto ontológico, de onde toda a problematicidade ponderosa decorre: como já vimos, se não for «coisa humana», não suscita qualquer problema ético ou bioético relevante.
Mas qual é o estatuto ontológico desse «ente abortável». Durante muito tempo, não se sabia precisamente o que se passava no seio do útero, pelo que a especulação reinava e podia haver muita da chamada «opinião», coisa nefasta em ciência, ciência em que o que se procura são descrições reais ou pelo menos realistas do que as coisas e os actos são, não afirmações realmente infundadas sobre o que se pensa que seja – esta última parte não é ciência, é mera tolice.
Ora, o desenvolvimento dos meios de imagiologia, aliado ao desenvolvimento dos meios de estudo geral em termos de desenvolvimento celular e histológico, permitiu que se saiba, desde o momento em que ambos os gâmetas se encontram em rota de encontro e, dado esse encontro, e em que o elemento masculino penetra o elemento feminino, isto é, o espermatozóide penetra a membrana citoplasmática do óvulo e se dá a recombinação em uma só dupla hélice das contribuições haplóides de cada um de tais veículos, que tudo o que ali está, quer dizer, o ovo, é tão humano quanto foi cada um dos ovos que originou cada um dos co-progenitores.
Ontologicamente, este material já é biologicamente humano.
A negação desta realidade será paralela às posições que negavam a real humanidade por exemplo aos judeus, só porque a sua herança genética não era tão humana quanto a dos arianos que os julgavam.
Assim sendo, a discussão desloca-se da realidade biológica do ovo humano – não se lhe pode chamar outra coisa – para a consideração moral do que essa realidade pode querer significar.
Deste modo, podemos, se quisermos, afirmar que, apesar de biologicamente ser assim, só há real humanidade quando... e, dado que é impossível determinar um momento de real diferenciação humana, a consideração do que é ser verdadeiramente humano no seio do ventre materno passa de ser algo de biológico para ser algo de político: é através de uma afirmação política que eu defino o que é ser humano em clima intra-uterino (e apenas intra-uterino, porque aquando da eclosão extra-uterina já não há possibilidade de o fazer de modo aceitável).
Assim, independentemente da evidência biológica – onto-biológica –, é possível e é praticada a redefinição da passagem à humanidade do ente intra-uterino de uma forma meramente política. Tal passagem permite que se possa considerar o que seria um homicídio, segundo critério de humanidade biologicamente fundado, em algo de humanamente irrelevante.
Dá-se, assim, uma redefinição dos bens em causa. Do lado do ente abortável, a um bem propriamente humano, sucede um bem qualquer, já não propriamente humano, pelo que não há que o defender, como se deve defender um bem propriamente humano, mormente a própria vida.
Do lado de quem quer abortar, uma situação que se aproxima da dilematicidade, em que a uma vida humana se opõe o interesse de uma outra vida humana, é transformada numa simples situação de mera escolha de remover ou não um corpo físico estranho ao e do seu próprio corpo.
Mas tal passagem não resolve o problema profundo de quem continuar a acreditar que o corpo estranho é tão humano quanto o seu próprio.
A situação que o aborto voluntário sempre implica encontra-se nos antípodas do que é a situação do aborto não-voluntário: neste, não há qualquer responsabilidade por parte de qualquer ser humano; naquele, há sempre uma qualquer responsabilidade de um qualquer ser humano ou de mais do que um ser humano. Há uma escolha, logo, há isso que define a ética como movimento próprio do ser humano. Mas há também um gesto político, pois o movimento ético não se dá no isolamento como que atómico de uma interioridade humana isolada, antes na relação quer com isso que se aborta, seja o seu estatuto definido o que seja, quer com quem coopera para que tal suceda.

Fevereiro de 2018

Américo Pereira