Pecado original

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domingo, 25 de fevereiro de 2018

Bioética XIII - A questão do aborto


Isso que é comummente designado como «aborto voluntário» e que ostenta a designação técnica de «interrupção voluntária da gravidez», também conhecida como IVG, recebe toda a sua importância e premência por nele estar ou poder estar em causa uma realidade propriamente humana. Se tal não acontecesse, a sua relevância seria nula. Assim, se se tratasse da simples remoção de um mero corpo estranho, isto é, de uma coisa estranha ao corpo portador, tal constituiria apenas uma intervenção sanitária comum, tão comum como fazer a ablação de um pedaço de estilhaço ou de um tumor, por exemplo.
Quaisquer intervenções prototipificadas nestes exemplos não constituem qualquer problema ético ou bioético quer relativamente a isso que se remove quer para o sujeito intervencionado, salvo se tal intervenção puder fazer perigar um qualquer bem maior. Esta é a única ressalva lógica e racionalmente aceitável.
É apenas através da lógica e da razão que estes temas éticos e bioéticos devem ser abordados, respeitando integralmente a capacidade que a lógica e a razão possuem na mediação que permite o acesso à realidade das coisas.
Assim, todos os supostos ou pressupostos que não respeitam a lógica ou a razão, sejam quais forem as suas origens, devem ser liminarmente recusados. Deste modo, apenas a evidência lógica e racional é aceitável, não sendo aceites quaisquer contribuições que pretendam violentar, no curso da reflexão lógica e racional, num sentido ou noutro, a realidade da evidência, tanto quanto ela é humanamente possível, em cada dado momento da marcha do pensamento humano, sabendo que ninguém possui humanamente qualquer verdade que deva ser imposta como definitiva.
Mesmo no âmbito da religião, nenhuma verdade se opõe ao que é o sentido de um ordenamento lógico e estruturalmente racional das coisas. A religião não o faz, nada o deve fazer. Os momentos de desrespeito lógico-racional devem ser postos de parte. O que interessa, humanamente, é a defesa de um bem maior possível, bem que é, humanamente, sempre, um necessário bem-comum, que não é compaginável quer com um bem privado individual, privativo do bem alheio, quer com o bem de um grupo parcial, por maior que seja, mas que é o bem de todos, o bem para todos, que permita, na realidade, o melhor bem possível para cada ser.
Assim sendo, há uma necessária dimensão política em bioética (há-a na ética em geral, se não se considerar o ser humano como uma «ilha isolada»), que implica que haja sempre um acordo entre as várias possibilidades de bem dos vários intervenientes. O prejuízo do bem, real ou possível, de um em benefício do bem, real ou possível, de outro – assim indevido – é sempre a escravização tópica do prejudicado relativamente ao beneficiado.
Poder-se-á dizer que o modo comum de relação entre os seres humanos sempre foi tipificado por uma tal relação. A universalização de uma tal forma de relação, a existir, significaria que a humanidade fora, desde sempre, constituída por dois tipos de seres: parasitas e parasitados. Mas é este o verdadeiro registo da agência humana?
Cada ser humano, relativamente a qualquer outro ser humano, é apenas um possível parasita ou um possível parasitável?
Não deverá a relação humana ser toda ela e sempre apontada à promoção exclusiva do maior bem para todos, sem omissão de qualquer um?
É este o desiderato do bem-comum, sem o qual, sem a aplicação do qual, a humanidade nunca passará da tal relação entre parasitas e parasitados, pois haverá sempre um qualquer ser humano – pelo menos um – que será feito mera função do bem de outro ou outros, sem que possa ter direito a um bem próprio seu, nisso irredutível.
Assim, como em todas as questões realmente bioéticas, a linha orientadora lógica e racional do pensamento deve ser a do bem-comum, sem o que é a mesma humanidade que é posta em causa, pois é a negação do direito a uma plena humanidade que está em causa.
As questões profundas no âmbito do aborto voluntário nascem aqui e apenas aqui.
No limite, haverá sempre um conflito entre o direito a um bem qualquer por parte de quem quer abortar e o direito ao bem de isso que poderá ser abortado a partir daquela vontade. O mais decorre daqui.
É, assim, a faceta voluntária desta possibilidade que suscita problemas: um aborto não voluntário, isto é, em que não haja qualquer intervenção humana que o provoque, nunca constitui problema bioético ou sequer ético, limita-se a acontecer e a ter as consequências sanitárias que dele decorrerem, físicas ou não-físicas.
Mas o que, do lado do ente abortável, tem real peso é o seu estatuto ontológico, de onde toda a problematicidade ponderosa decorre: como já vimos, se não for «coisa humana», não suscita qualquer problema ético ou bioético relevante.
Mas qual é o estatuto ontológico desse «ente abortável». Durante muito tempo, não se sabia precisamente o que se passava no seio do útero, pelo que a especulação reinava e podia haver muita da chamada «opinião», coisa nefasta em ciência, ciência em que o que se procura são descrições reais ou pelo menos realistas do que as coisas e os actos são, não afirmações realmente infundadas sobre o que se pensa que seja – esta última parte não é ciência, é mera tolice.
Ora, o desenvolvimento dos meios de imagiologia, aliado ao desenvolvimento dos meios de estudo geral em termos de desenvolvimento celular e histológico, permitiu que se saiba, desde o momento em que ambos os gâmetas se encontram em rota de encontro e, dado esse encontro, e em que o elemento masculino penetra o elemento feminino, isto é, o espermatozóide penetra a membrana citoplasmática do óvulo e se dá a recombinação em uma só dupla hélice das contribuições haplóides de cada um de tais veículos, que tudo o que ali está, quer dizer, o ovo, é tão humano quanto foi cada um dos ovos que originou cada um dos co-progenitores.
Ontologicamente, este material já é biologicamente humano.
A negação desta realidade será paralela às posições que negavam a real humanidade por exemplo aos judeus, só porque a sua herança genética não era tão humana quanto a dos arianos que os julgavam.
Assim sendo, a discussão desloca-se da realidade biológica do ovo humano – não se lhe pode chamar outra coisa – para a consideração moral do que essa realidade pode querer significar.
Deste modo, podemos, se quisermos, afirmar que, apesar de biologicamente ser assim, só há real humanidade quando... e, dado que é impossível determinar um momento de real diferenciação humana, a consideração do que é ser verdadeiramente humano no seio do ventre materno passa de ser algo de biológico para ser algo de político: é através de uma afirmação política que eu defino o que é ser humano em clima intra-uterino (e apenas intra-uterino, porque aquando da eclosão extra-uterina já não há possibilidade de o fazer de modo aceitável).
Assim, independentemente da evidência biológica – onto-biológica –, é possível e é praticada a redefinição da passagem à humanidade do ente intra-uterino de uma forma meramente política. Tal passagem permite que se possa considerar o que seria um homicídio, segundo critério de humanidade biologicamente fundado, em algo de humanamente irrelevante.
Dá-se, assim, uma redefinição dos bens em causa. Do lado do ente abortável, a um bem propriamente humano, sucede um bem qualquer, já não propriamente humano, pelo que não há que o defender, como se deve defender um bem propriamente humano, mormente a própria vida.
Do lado de quem quer abortar, uma situação que se aproxima da dilematicidade, em que a uma vida humana se opõe o interesse de uma outra vida humana, é transformada numa simples situação de mera escolha de remover ou não um corpo físico estranho ao e do seu próprio corpo.
Mas tal passagem não resolve o problema profundo de quem continuar a acreditar que o corpo estranho é tão humano quanto o seu próprio.
A situação que o aborto voluntário sempre implica encontra-se nos antípodas do que é a situação do aborto não-voluntário: neste, não há qualquer responsabilidade por parte de qualquer ser humano; naquele, há sempre uma qualquer responsabilidade de um qualquer ser humano ou de mais do que um ser humano. Há uma escolha, logo, há isso que define a ética como movimento próprio do ser humano. Mas há também um gesto político, pois o movimento ético não se dá no isolamento como que atómico de uma interioridade humana isolada, antes na relação quer com isso que se aborta, seja o seu estatuto definido o que seja, quer com quem coopera para que tal suceda.

Fevereiro de 2018

Américo Pereira

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