Isso que é comummente
designado como «aborto voluntário» e que ostenta a designação técnica de
«interrupção voluntária da gravidez», também conhecida como IVG, recebe toda a
sua importância e premência por nele estar ou poder estar em causa uma
realidade propriamente humana. Se tal não acontecesse, a sua relevância seria
nula. Assim, se se tratasse da simples remoção de um mero corpo estranho, isto
é, de uma coisa estranha ao corpo portador, tal constituiria apenas uma
intervenção sanitária comum, tão comum como fazer a ablação de um pedaço de
estilhaço ou de um tumor, por exemplo.
Quaisquer intervenções
prototipificadas nestes exemplos não constituem qualquer problema ético ou
bioético quer relativamente a isso que se remove quer para o sujeito
intervencionado, salvo se tal intervenção puder fazer perigar um qualquer bem
maior. Esta é a única ressalva lógica e racionalmente aceitável.
É apenas através da
lógica e da razão que estes temas éticos e bioéticos devem ser abordados,
respeitando integralmente a capacidade que a lógica e a razão possuem na
mediação que permite o acesso à realidade das coisas.
Assim, todos os supostos
ou pressupostos que não respeitam a lógica ou a razão, sejam quais forem as
suas origens, devem ser liminarmente recusados. Deste modo, apenas a evidência
lógica e racional é aceitável, não sendo aceites quaisquer contribuições que
pretendam violentar, no curso da reflexão lógica e racional, num sentido ou
noutro, a realidade da evidência, tanto quanto ela é humanamente possível, em
cada dado momento da marcha do pensamento humano, sabendo que ninguém possui
humanamente qualquer verdade que deva ser imposta como definitiva.
Mesmo no âmbito da
religião, nenhuma verdade se opõe ao que é o sentido de um ordenamento lógico e
estruturalmente racional das coisas. A religião não o faz, nada o deve fazer.
Os momentos de desrespeito lógico-racional devem ser postos de parte. O que
interessa, humanamente, é a defesa de um bem maior possível, bem que é,
humanamente, sempre, um necessário bem-comum, que não é compaginável quer com
um bem privado individual, privativo do bem alheio, quer com o bem de um grupo
parcial, por maior que seja, mas que é o bem de todos, o bem para todos, que
permita, na realidade, o melhor bem
possível para cada ser.
Assim sendo, há uma
necessária dimensão política em bioética (há-a na ética em geral, se não se
considerar o ser humano como uma «ilha isolada»), que implica que haja sempre
um acordo entre as várias possibilidades de bem dos vários intervenientes. O
prejuízo do bem, real ou possível, de um em benefício do bem, real ou possível,
de outro – assim indevido – é sempre a escravização tópica do prejudicado
relativamente ao beneficiado.
Poder-se-á dizer que o
modo comum de relação entre os seres humanos sempre foi tipificado por uma tal
relação. A universalização de uma tal forma de relação, a existir, significaria
que a humanidade fora, desde sempre, constituída por dois tipos de seres:
parasitas e parasitados. Mas é este o verdadeiro registo da agência humana?
Cada ser humano,
relativamente a qualquer outro ser humano, é apenas um possível parasita ou um
possível parasitável?
Não deverá a relação
humana ser toda ela e sempre apontada à promoção exclusiva do maior bem para
todos, sem omissão de qualquer um?
É este o desiderato do
bem-comum, sem o qual, sem a aplicação do qual, a humanidade nunca passará da
tal relação entre parasitas e parasitados, pois haverá sempre um qualquer ser
humano – pelo menos um – que será feito mera função do bem de outro ou outros,
sem que possa ter direito a um bem próprio seu, nisso irredutível.
Assim, como em todas as
questões realmente bioéticas, a linha orientadora lógica e racional do
pensamento deve ser a do bem-comum, sem o que é a mesma humanidade que é posta
em causa, pois é a negação do direito a uma plena humanidade que está em causa.
As questões profundas no
âmbito do aborto voluntário nascem aqui e apenas aqui.
No limite, haverá sempre
um conflito entre o direito a um bem qualquer por parte de quem quer abortar e
o direito ao bem de isso que poderá ser abortado a partir daquela vontade. O
mais decorre daqui.
É, assim, a faceta
voluntária desta possibilidade que suscita problemas: um aborto não voluntário,
isto é, em que não haja qualquer intervenção humana que o provoque, nunca
constitui problema bioético ou sequer ético, limita-se a acontecer e a ter as
consequências sanitárias que dele decorrerem, físicas ou não-físicas.
Mas o que, do lado do
ente abortável, tem real peso é o seu estatuto ontológico, de onde toda a
problematicidade ponderosa decorre: como já vimos, se não for «coisa humana»,
não suscita qualquer problema ético ou bioético relevante.
Mas qual é o estatuto
ontológico desse «ente abortável». Durante muito tempo, não se sabia
precisamente o que se passava no seio do útero, pelo que a especulação reinava
e podia haver muita da chamada «opinião», coisa nefasta em ciência, ciência em
que o que se procura são descrições reais ou pelo menos realistas do que as
coisas e os actos são, não afirmações realmente infundadas sobre o que se pensa
que seja – esta última parte não é ciência, é mera tolice.
Ora, o desenvolvimento
dos meios de imagiologia, aliado ao desenvolvimento dos meios de estudo geral
em termos de desenvolvimento celular e histológico, permitiu que se saiba,
desde o momento em que ambos os gâmetas se encontram em rota de encontro e,
dado esse encontro, e em que o elemento masculino penetra o elemento feminino,
isto é, o espermatozóide penetra a membrana citoplasmática do óvulo e se dá a
recombinação em uma só dupla hélice das contribuições haplóides de cada um de
tais veículos, que tudo o que ali está, quer dizer, o ovo, é tão humano quanto
foi cada um dos ovos que originou cada um dos co-progenitores.
Ontologicamente, este material já é biologicamente humano.
A negação desta realidade
será paralela às posições que negavam a real humanidade por exemplo aos judeus,
só porque a sua herança genética não era tão humana quanto a dos arianos que os
julgavam.
Assim sendo, a discussão
desloca-se da realidade biológica do ovo humano – não se lhe pode chamar outra
coisa – para a consideração moral do que essa realidade pode querer significar.
Deste modo, podemos, se
quisermos, afirmar que, apesar de biologicamente ser assim, só há real
humanidade quando... e, dado que é impossível determinar um momento de real
diferenciação humana, a consideração do que é ser verdadeiramente humano no
seio do ventre materno passa de ser algo de biológico para ser algo de
político: é através de uma afirmação política que eu defino o que é ser humano
em clima intra-uterino (e apenas intra-uterino, porque aquando da eclosão
extra-uterina já não há possibilidade de o fazer de modo aceitável).
Assim, independentemente
da evidência biológica – onto-biológica –, é possível e é praticada a redefinição da passagem à humanidade do ente
intra-uterino de uma forma meramente política. Tal passagem permite que se
possa considerar o que seria um homicídio, segundo critério de humanidade
biologicamente fundado, em algo de humanamente irrelevante.
Dá-se, assim, uma redefinição dos bens em causa. Do lado
do ente abortável, a um bem propriamente humano, sucede um bem qualquer, já não
propriamente humano, pelo que não há que o defender, como se deve defender um
bem propriamente humano, mormente a própria vida.
Do lado de quem quer
abortar, uma situação que se aproxima da dilematicidade, em que a uma vida
humana se opõe o interesse de uma outra vida humana, é transformada numa
simples situação de mera escolha de remover ou não um corpo físico estranho ao
e do seu próprio corpo.
Mas tal passagem não
resolve o problema profundo de quem continuar a acreditar que o corpo estranho
é tão humano quanto o seu próprio.
A situação que o aborto
voluntário sempre implica encontra-se nos antípodas do que é a situação do
aborto não-voluntário: neste, não há qualquer responsabilidade por parte de
qualquer ser humano; naquele, há sempre uma qualquer responsabilidade de um
qualquer ser humano ou de mais do que um ser humano. Há uma escolha, logo, há
isso que define a ética como movimento próprio do ser humano. Mas há também um
gesto político, pois o movimento ético não se dá no isolamento como que atómico
de uma interioridade humana isolada, antes na relação quer com isso que se
aborta, seja o seu estatuto definido o que seja, quer com quem coopera para que
tal suceda.
Fevereiro de 2018
Américo Pereira
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.